quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

O século XVIII na cultura portuguesa

- Um olhar de Hernâni Cidade

Conhecer a História e a identidade cultural, à parte da formação e do ensino, em Portugal no século XVIII, é o que se propõe Hernâni Cidade com a obra Ensaio Sobre a Crise Cultural do Século XVIII, reeditada pela Presença.
O livro é uma análise transversal quer do ensino, quer da cultura portuguesa em comparação com o que se passava na Europa, e das propostas existentes para a alteração da situação, sobretudo através de uma análise profunda da obra O Verdadeiro Método de Estudar, do Padre Luís António Verney, um texto polémico na época devido à influência jesuíta no ensino. Influência que acabou por ser alterada com a reforma pombalina e que acaba por gerar aquilo que o autor considera como o «triunfo do espírito moderno», profundamente analisado no segundo capítulo da obra. Na terceira parte, Hernâni Cidade comenta as novas tendências da literatura e a sua influência no Portugal de XVIII.
É importante conhecer a escola e a tradição de ensino, sobretudo secundário, em Portugal, que desde 1561 era monopolizado pelos jesuítas. É este clima de sufocação do ensino, que leva o Padre Verney a lutar contra a incapacidade e a mentalidade instalada. Uma nova visão da escola quase custou a vida a Verney, que teve de lutar contra os interesses instalados, sobretudo da comunidade jesuíta, que detinha grandes influências no poder real, através da Inquisição.
O que o Padre Verney pretendeu fazer foi uma revolução no ensino em Portugal, a exemplo do que se passava em França e na Inglaterra, apoiando-se nas teorias de Descartes. Não é demais relembrar que o francês era estudado havia perto de cem anos, mas em Portugal estudava-se ainda na base de textos antigos, sendo considerado uma heresia publicar obras na língua pátria, ou seja, na língua falada naquela época. O padre jesuíta Arsénio encabeçava a luta por princípios retrógrados e com grande influência negativa no ensino em Portugal, «a nossa língua não é morta nem tão difícil como as clássicas, para que se precise tal diligência. Falar falam os rapazes que amofinam os mestres e é necessário castigá-los para que se calem».
No fundo, Verney fez a primeiro esforço para a «integração de Portugal na cultura europeia», considera Hernâni Cidade.
Com o advento reformador do pombalismo fez-se a renovação da universidade, que levou à destruição da velha estrutura do ensino superior e ao fim dos colégios jesuítas. É nesta fase que entra pela primeira vez na instrução a língua pátria. Segundo o autor não se deve «aceitar que os jesuítas houvessem cavilosamente arruinado a ciência e, muito menos, tentado tornar irreligiosa a nação. Mas temos o direito de afirmar que, se não fora a reacção que os venceu, continuaríamos, não se sabe até quando, merecendo, pela ignorância improgressiva, o apodo de Índios da Europa».
A segunda metade do século acaba por transformar, de forma positiva, o panorama cultural da época, com uma introspecção no romance através do Padre Teodoro de Almeida e o renascer da poesia através de exemplos poéticos.
A cultura da poesia descritiva e filosófica tem nesta altura um dos seus melhores mestres, o Padre José Agostinho de Macedo, passando depois para o lirismo pessoal de José Anastácio da Cunha e de Correia Garção. No entanto, esta fase da poesia portuguesa tem os seus grandes expoentes em Bocage, Filinto Elísio e D. Leonor de Almeida.
Em conclusão, Hernâni Cidade considera que o século XVIII foi, entre nós, uma época de crise. «Deu-se nele o encontro e, consequentemente, o choque entre duas atitudes mentais e morais, em quase toda a Europa distanciadas perto de dois séculos – a atitude intelectual da Idade Média que teimava em aqui persistir, e a atitude intelectual do mundo contemporâneo, de quem não podia deixar de ser o triunfo definitivo.»
Alfredo Vieira

domingo, 25 de novembro de 2007

As dez Exposições Gerais de Artes Plásticas

O presente trabalho aqui apresentado é baseado em elementos de uma obra mais vasta de Garcez da Silva, que se encontra em preparação, e que tem por título Subsídios para a História do Neo-Realismo na Pintura Portuguesa.
Recorde-se que estas Exposições, realizadas na década de quarenta e cinquenta na Sociedade Nacional de Belas Artes (SNBA), em Lisboa – abriram as portas em Julho de 1946 e terminaram em Junho de 1956, teve no ano de 1952 um interregno por imposição do governo, com o encerramento SNBA, por considerar que este movimento cultural estava envolvido em acções oposicionistas – iniciaram-se num de tempo de grande esperança colectiva do povo português, que via findar a Segunda Guerra Mundial e abriam-se boas perspectivas para a democratização do país que vivia debaixo de uma terrível ditadura fascista liderada por Salazar. Com o panorama risonho de derrota das ditaduras europeias, os democratas portugueses organizavam-se politicamente em movimentos mais ou menos semi-clandestinos e floria uma nova aurora nos intelectuais portugueses, começando a despontar o movimento conhecido por neo-realista, iniciado nos finais da década de trinta com a publicação do livro Gaibéus, de Alves Redol.
Rapidamente esta corrente esteta chegou às artes plásticas e os artistas portugueses experimentaram esta nova corrente de pensamento para se exprimirem nas suas obras.
Segundo o catálogo da I Exposição esta mostra tinha uma aparente falta de unidade nas obras colocadas à apreciação do público porque «as artes voltam a aproximar-se, a viver de certo modo em função umas das outras, como expressões diferentes mas solidárias dum Homem que tem estado separado, incompleto, despedaçado e agora busca ansiosamente o caminho da sua integração» ao descobrir «de novo o valor da cooperação e da unidade». De realçar a forma como se expressão valores como cooperação e unidade em artistas e em trabalhos tão diferentes, a mensagem que se queria passar não era destituída de sentido político, pois a exposição era organizada pelo MUD – Movimento de Unidade Democrática. Esta I Exposição contou com cerca de uma centena de artistas, muitos nomes já consagrados e outros desconhecidos do público, «de ramos da Arte e diversas tendências, se terem dados as mãos para realizar esta exposição».
Adolfo Casais Monteiro, em O Mundo Literário, considerava positivo «o confronto regular das tendências várias de gerações diferentes». Muitos outros cronistas e críticos da época manifestaram o seu apoio à forma escolhida para a Exposição, Mário Dionísio, n’O Globo, sublinhava o realismo que ali constituía «afinal uma atitude de solidariedade, de abnegação, de alta humanidade…». Foram analisadas por Fernando de Azevedo as formas de representação neo-realistas da exposição, num número duplo de Horizonte – Jornal das Artes dedicado à Exposição, também José-Augusto França nesse mesmo número publicou um artigo que aferia o surrealismo de António Pedro com o neo-realismo de Júlio Pomar e expunha os seus pontos de vista não muito divergentes, face à predominância realista que imperava na Exposição. Mesmo o Diário da Manhã, órgão do regime, fazia a apologia da Exposição, sem se aperceber do seu conteúdo. Posição que não se iria manter na II Exposição, pois fizeram-lhe um cerrado ataque, considerando-a como «propaganda reles» onde figuram «verdadeiros burgueses e pseudo-proletários» e acusava as pinturas expostas de serem «más imitações, quase plágios, maus plágios dos pintores comunistas mexicanos». No entanto, estas críticas ferozes estimularam o interesse do público, o que levou o governo, numa acção chefiada pelo próprio ministro do Interior, a apreender as obras que considerava mais agressivas da «civilização a que pertencemos». Essa apreensão atingiu as obras de Pomar, Arco, Avelino Cunhal, Maria Keil e Manuel Ribeiro de Pavia, seguindo-se a perseguição, por parte da PIDE, de artistas conotados com a oposição.
A III Exposição é marcada por um conflito entre surrealistas e neo-realistas, o que levam a que alguns artistas desta última corrente não participassem. Esta falta foi colmatada por simpatizantes do movimento neo-realista, permitindo manter este projecto, bem vivo, na sua expressão político-cultural.
A IV Exposição apresenta-se ao público com os mesmos propósitos das três primeiras, mas tendo como novidade «algumas tapeçarias feitas em Portugal, pela Fábrica de Tapetes de Portalegre, a partir de cartões de artistas portugueses contemporâneos».
As Exposições seguintes continuam na mesma senda das quatro primeiras tendo a vertente da tapeçaria ganho mais adeptos, sobretudo por parte dos neo-realistas, que viram nesta forma de arte uma maneira de melhor se ligarem ao povo.
A publicação de alguns novos romances de Alves Redol incita os artistas plásticos neo-realistas a visitar os campo de arroz ribatejanos, de modo a estes reproduzirem alguns aspectos do labor, principalmente feminino, que caracterizava o cultivo do arroz. Deste movimento nasce o Ciclo do Arroz, que vêm a influenciar a VIII Exposição, em 1954, com destaque para uma litografia de Cipriano Dourado, uma pintura de Maria Alice Jorge, Monda de Arroz, e três desenhos e duas pinturas de Júlio Pomar, com a designação genérica de Estudos para o Ciclo do Arroz.
A última das Exposição Gerais de Artes Plásticas, que teve lugar no ano de 1956, reuniu principalmente artistas conotados com o movimento neo-realista, o que não agradava ao regime, que endurecera a repressão na década de cinquenta. Esta última Exposição completou uma jornada a que o Catálogo «ousou chamar histórica, pela repercussão que atingiu, logo no começo, não só nos círculos mais perto ligados às artes, como ao público em geral».
Parte das obras patentes nas dez Exposições Gerais de Artes Plásticas, foram reunidas na exposição Um Tempo e um Lugar, que esteve patente no Celeiro da Patriarcal, em Vila Franca de Xira, onde o público teve oportunidade de visitar. Esta exposição foi organizada da Câmara Municipal local, comissariada pelo Mestre Rogério Ribeiro. Nela foi mostrada diversas peças das várias facetas das artes plásticas, assim como imprensa da época e primeiras edições de obras literárias ligadas à corrente neo-realista portuguesa.
Alfredo Vieira

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

O culto e a cultura

Para além de templos, as igrejas, sés, catedrais ou simples ermidas são a memória viva de vários séculos de história do nosso país. Passaram por estes lugares gerações, são monumentos que apresentação várias épocas e formas arquitectónicas e culturais, por isso os templos religiosos, sobretudo os católicos, são parte da cultura portuguesa e património de todos nós, independentemente da nossa fé.
Sabemos que as igrejas são, acima de tudo, templos de fé, de oração e de meditação, no entanto, há algo mais para além do religioso e que se encontra guardado nesses lugares de culto, que não podem ser sonegados a todos os amantes da arte e do património português. É óbvio que deve ser respeitado quem busca esses locais para as suas manifestações de fé, quem os procura simplesmente pela arte e pelo legado religioso que as igrejas encerram, deve-o fazer em silêncio sem incomodar os crentes, o que não deve ser feito é exigir a quem procura o prazer das obras-primas que não o faça porque se está num espaço religioso.
Tudo isto vem a propósito do prefácio da obra Antiguidade da Sagrada Imagem de Nossa Senhora da Nazaré, da autoria de Manuel de Brito Alão, prefácio esse assinado por Dom Manuel Clemente, Bispo Auxiliar de Lisboa, que está encarregue da Região Pastoral do Oeste e professor da Universidade Católica Portuguesa, que diz a determinado passo: «Mas há outra maneira, porventura menos advertida, dum santuário deixar de sê-lo: é ir deslizando do culto para a cultura – no sentido pobre desta –, da devoção para a mera curiosidade, da peregrinação para o simples turismo. E isto acontece e muito, com melhor ou pior gosto.» Não se entende bem o que é este melhor ou pior gosto, no entanto, não podemos concordar com as afirmações produzidas, já que ao admirar estes espaços, que apesar de serem propriedade da igreja, são um legado público, já que as instâncias superiores da Igreja Católica não contribui para a construção ou preservação desses espaços. É o dinheiro do povo, dos crentes anónimos e de quem ama a cultura, que vai manter vivo as relíquias que as igrejas encerram.
Um dia ao perguntar ao Cardeal Patriarca de Lisboa Dom José Policarpo, a propósito da inauguração de uma igreja, quanto tinha o Patriarcado contribuído para erguer aquele monumento, a resposta foi dúbia e a conclusão simples: esta instituição superior da Igreja não contribui com nada para manter ou criar novos templos, é o dinheiro dos contribuintes e dos crentes que assegura esse espólio religioso e cultural, mas que no entender do prefaciador da obra em questão só serve para o culto, e as obras que elas encerram não devem ser apreciadas.
O que seria de Montmatre, da Notre Dame em Paris, da Capella Sistina em Roma ou da Catedral de San Marco em Veneza, se não fossem os seus visitantes, aqueles que procuram o trabalho desenvolvido pelos grandes mestres. Em Portugal também há grandes obras de arte nas nossas igrejas, o templo de Nossa Senhora da Nazaré é um bom exemplo, quer pela localização, quer pela sua beleza, quer ainda pelo místico que encerra. Cada pessoa pode procurá-la pelas várias razões e não se deve pedir para que se encerre os templos, para que estes sejam só objecto de devoção ou peregrinação.
O culto e a cultura estão ligados e coabitam há muitos séculos, nunca se colocou em questão uma coisa e a outra, sempre que me desloco a locais de culto, pelo interesse da arte sacra, nunca senti o mínimo sinal de falta de respeito por quem reza e presta devoção a Deus ou aos Santos.
Possivelmente muitas das ruínas de lugares de culto, alguns deles inclusivamente já desaparecidos e que se encontram unicamente nas memórias dos povos, são responsabilidade da Igreja, porque não olhou para eles a tempo ou não alertou para quem de direito do seu estado de conservação. A mim também me dói a alma quando alguma igreja desaparece, porque com ela desaparece a memória colectiva, não só daquela comunidade, como de um país.
Alfredo Vieira

terça-feira, 13 de novembro de 2007

A memória esquecida ou a identidade nacional

«Nós descobrimos o mundo.
Havemos também de descobrir Portugal.»
Salgado Zenha, citado por Eduardo Lourenço
em O Fascismo nunca Existiu
A propósito da leitura de dois textos de Maria de Lurdes Belchior, Sobre o Carácter Nacional ou Para uma «Explicação» de Portugal e Portugal: o Labirinto da Saudade – este último sobre a obra de Eduardo Lourenço O Labirinto da Saudade: Psicanálise Mítica do Destino Português –, ressalta-nos um conjunto de interrogações sobre o passado, o presente e o futuro de um país, que, no início da sua formação enquanto nação, teve um passado grandioso, mas que, lentamente, foi criando uma imagem de um povo céptico, indiferente e fatalista, como o definiu Almeida Faria no seu romance Lusitânia.
Somos a memória de um povo sentado na Ponta de Sagres que espera um D. Sebastião, como a imagem do Infante Dom Henrique fintando o azul do infinito onde o mar se confunde com o céu, ou em peregrinação a Fátima à espera da Divina Providência para poder resolver todos os nossos problemas, sejam eles de natureza económica, social ou até de circunstâncias temporais. Este tipo de pressupostos é a memória de um povo de um país subdesenvolvido do terceiro mundo e não de um Portugal que se quer moderno e europeu, mas com uma relação preferencial com a sua História.
Portugal tem uma identidade, é uma das nações mais antigas do Velho Continente, pegou em armas por diversas vezes para manter essa soberania e essa identidade. Mas, ao mesmo tempo, continuamos à procura dessa lusitaniadade, o orgulho de existirmos enquanto Povo com uma analogia própria, como a mensagem que nos foi deixada por Camões, Pessoa e tantos outros.
Bem ao contrário é a realidade. Procuramos para Portugal a importação de um modelo social desajustado, muitas das vezes baseados em imagens de sociedades, sem identidade cultural, plágios que tantas vezes nos são dados pelos dirigentes deste país de sol e de praias. Como escreveu Eduardo Lourenço em O Fascismo nunca Existiu, somos «um país fascinado em grau patológico pelo estrangeiro».
Somos um Povo sui generis, herdeiros de uma transcontinentalidade, que levou a língua portuguesa a todos os cantos do mundo, deixando-a espalhada pelos cinco continentes. Mas não transportámos uma cultura, unicamente levamos um padre e uma Bíblia, não a nossa preciosa identidade enquanto Povo.
Talvez seja tempo de rebuscarmos na ancestralidade portuguesa um fundamento, um princípio, onde possamos encontrar uma identidade cultural, de forma a colocarmo-nos de uma vez por todas um ponto final à desilusão nacional.
Lopes de Mendonça entendeu ser Portugal «um país quase imóvel no meio das suas revoluções», Fernando Pessoa, numa análise de 1915, retrata-nos «como gente incapaz de revoluções profundas; conformistas e passivos, falta-nos o golpe de asa que nos faria passar além» (Belchior, Maria de Lurdes, in Portugal: O Labirinto da Saudade, Revista de História Económica e Social), Miguel Torga em Diário, deixa a ideia que somos «Um país com oito séculos de existência que ainda não encontrou a sua identidade». Este é, de facto, o cerne da questão, será que somos condenados pelas fatalidades da vida, um país de homens sem utopias, perdidos no cepticismo ou teremos a coragem e a força para nos assumirmos enquanto povo deixando de ser os «cafres da Europa» como nos chamou o Padre António Vieira?
Continua a dizer-se que o problema nacional é um problema de cultura, então parece de fácil resolução.
Com o 25 de Abril de 1974 abriu-se uma porta de esperança para a criação de uma identidade portuguesa, de criação de um pais que se preparava para cumprir um ideal de quinhentos anos, onde um povo deixava de estar à espera de um rei que deveria de chegar por entre as brumas que resolve-se os nossos problemas. Contudo passados dois ou três anos essa esperança desvaneceu-se e voltámos à infinita resignação, ao espírito humilde e subserviente luso. Na década de oitenta, com a integração na comunidade europeia, esperámos que isso nos resolve-se todos os problemas, depois foi a moeda única… enfim, continuamos sentados ou em peregrinação à espera que algo mítico ou a Europa nos resolva os nossas dificuldades, num saudosismo que nos impede de construir o futuro. «Antigamente é que era bom», «no meu tempo…» são expressões comuns do nosso léxico que em nada nos prestigia, pelo contrário mostra a cobardia de avançarmos de forma adaptarmo-nos à vida moderna e aos desafios que o mundo nos coloca, enquanto povo, enquanto nação e enquanto responsáveis por muitos milhões de falantes da língua portuguesa.
Alfredo Vieira

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Um rei sem trono

Portugal viveu vários períodos conturbados da sua história. Um deles foi a perda de independência para Filipe II de Castela, depois da estrondosa derrota em Alcácer-Quibir, uma aventura cara de Dom Sebastião, que deixou este país órfão, pobre e desprotegido. Durante este agitado período alguns homens se destacaram, outros nem tanto.
Um dos homens que mais se destacou durante esse período foi D. António de Portugal, Prior do Crato, a quem Urbano Tavares Rodrigues dedicou uma biografia ficcionada, Os Cadernos Secretos do Prior do Crato, editado pela Dom Quixote, onde pensamentos, revelações e a sua vida quotidiana são tratados pelo autor numa forma reimaginada, e por vezes inventada, dando um sabor diferente à história.
Amores proibidos, lutas heróicas, exílio em França e um trono efémero nos Açores ditam a longa vida deste homem, que abnegadamente dedicou a sua existência ao serviço de Portugal, apesar de ir sempre de derrota em derrota. Até porque não era fácil derrotar Castela naquela época, estávamos perante a Invencível Armada. Mas D. António era um homem perseverante, nunca se sentiu derrotado, «Das duas vertentes da vida, era seguramente a vesperal que em mim prevalecia, arrastando-me de desgraça em desgraça.» (pág. 66), e até ao final da sua vida procurou sempre a independência da sua pátria, porque, afinal «…sou, serei sempre no fundo irremediavelmente português.» (pág. 68). Contudo a sua grande mágoa era o exílio, apesar de todas mordomias que a coroa francesa dispensava ao herdeiro do trono de Portugal «Como é triste ser espoliado de todos os meus bens e estar agora, para conservar um tecto, na dependência dos que ascendem ao poder e não me conhecem a fundo.» (pág. 72)
De amores foi o Prior do Crato farto, mesmo durante o seu período eclesiástico. Muitas foram as mulheres da sua vida e vários os filhos que deixou – pelas suas contas dez, contudo alguns deveria desconhecer.
Apesar da forma sublime que Urbano Tavares Rodrigues escreve, na sua capacidade de escrita e criativa, pois conta com mais de noventa títulos (não sendo a nossa preocupação números, está muito perto dos cem, durante cinquenta e sete anos de vida literária), o Autor continua a ser mestre na arte de escrever sobre o amor. O amor carnal é descrito de forma sublime. Não roçando o grotesco, as personagens amam e sabem amar. Nesta forma de escrever sente-se como o escritor ama as mulheres e transporta esse sentimento para as suas personagens, tornando apetitosa a leitura das suas obras. D. António de Portugal amou todas as suas mulheres, um pouco como define Albert Camus no seu ensaio filosófico O Donjuanismo: «Não é por falta de amor que vai de mulher em mulher. […] Mas é porque ele as ama com idêntico entusiasmo e sempre com inteireza» (O Mito de Sísifo, pág. 76, ed. Livros do Brasil). Talvez esses grandes amores que o Prior do Crato, através de Urbano Tavares Rodrigues, recorda nesta obra, aliados ao grande amor pelo seu país, fossem a razão da sua longa existência.
Uma excelente obra, na linha de outras a que o Autor nos habituou, que nos dá a conhecer uma figura da História de Portugal, num país cheio de história, e abre uma nova faceta na escrita de Urbano Tavares Rodrigues, a ficção histórica, porque não se esconde o carácter ficcionado, mas, ao mesmo tempo, revela-se o enorme trabalho de pesquisa para se descobrir quem foi esta personagem enigmática.
Alfredo Vieira

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Portugal e o Iberismo

Ao contrário do muito que se escreve e se diz os portugueses não são um povo latino, nem essa latinidade se estende à Península Ibérica. Muito depois das invasões romanas a Ibéria recebe o domínio visigodo e árabe, que deixou vestígios bens fortes e marcas profundas na cultura e no povo português. Entretanto, já outras influências se tinham interiorizado na génese portuguesa. O que podemos dizer é que somos um povo ibérico.
Fernando Pessoa nos seus escritos políticos deixou uma nota importante, que marca a diferença em relação à tese que apresenta a influência marcadamente latina nas civilizações hispânicas e que, mais tarde, erradamente, viriam a culminar com a denominação, ainda hoje utilizada, de América Latina aos povos civilizados pelos espanhóis e portugueses no Novo Mundo. A expressão «Nós Ibéricos, somos o cruzamento de duas civilizações – a romana e a árabe.» faz parte de um conjunto de fragmentos de escritos, incluídos em Ibéria, citados por José Fernando Tavares na sua obra Fernando Pessoa e as Estratégias da Razão Política (ed. Instituto Piaget, 1998), que manifesta a simpatia do Poeta por um estado ibérico que pudesse aglomerar vastas zonas da América do Sul e Central, assim como parte do Norte de África, como essência de um Quinto Império, mas que agora não vem ao caso, o importante é a fórmula cultural e as raízes que Pessoa encontrou para chegar a esses princípios.
Fernando Pessoa foi, talvez, o primeiro a considerar-nos um povo não latino, caracterizando a influência galaico-portuguesa na formação da Nação. Da latinidade ficou-nos a língua, apesar de muitas influências gregas e árabes na formação de palavras importantes, dai a criação de uma língua própria derivada que evoluiu para o Romance, português vulgar falado acentuadamente a partir do Século XIII. «Não há, na enorme diversidade de factores sociais incluída nos povos a que se convencionou chamar “latinos” traço comum, que não seja uma certa semelhança linguística – semelhança essa porém que resulta, não de uma fundamental e espontânea semelhança de características raciais, mas de uma comum origem dos restos degenerados do Império Romano.» (Ibidem). Com este princípio denominador que faz prevalecer a origem comum de uma «alma ibérica» Pessoa acaba por colocar a Ibéria nos cinco grupos civilizacionais.
Temos de partir do princípio que a Península Ibérica é uma miscegenação de vários povos, a sua cultura sofre influências clássicas gregas e latinas, mas, também, celtas e árabes – civilização que não se conseguiu impor a um povo que adoptou o cristianismo de pendor romano, o que poderá ditar que alguns pensadores se apeguem a concluir sobre a influência latina na origem da cultura portuguesa. Também pode induzir em erro a importação no Século XV da literatura italiana, através de Sá de Miranda (1481-1558), que faz a transição do medieval para as inovações italianas, trazendo um estilo novo, que acaba por sobrepor-se à influência trovadoresca galaico-portuguesa do início da nacionalidade e que deu origem às cantigas de amigo, de amor e de escárnio e maldizer, com vários expoentes em poetas galaico-portugueses, como foi o caso dos reis D. Afonso X de Castela e D. Dinis. Sá de Miranda acaba por trazer consigo as grandes influências que acabam por continuar o período dourado da literatura portuguesa com a introdução do Renascimento e o Maneirismo, que têm o seu expoente máximo em Luís de Camões e na obra maior em língua portuguesa, Os Lusíadas.
No entanto, as grandes influências nacionais vão mais além, muitas delas com um cunho próprio e isso prova-o o espírito empreendedor dos descobrimentos portugueses e a forma da organização do império, muito diferentes dos princípios de conquista romana e dos povos latinos. Não fomos um povo de conquista, mas de ocupação. Quando nos instalámos como força colonizadora e civilizadora, normalmente, fomos bens acolhidos pelos povos indígenas e dessa forma alicerçou-se um império que, com altos e baixos, durou bastos anos.
Apesar da visão ibérica de Fernando Pessoa, e apesar dos traços civilizacionais comuns, estes dois países sempre viveram de costas voltadas e a cultura portuguesa, assim como a cultura espanhola, não souberam criar influências e nunca existiu uma expressão cultural comum. Recebemos vários tipos de escolas, sem nunca criar um espaço ibérico, com um traço marcante da influência que recebemos dos nossos antepassados, por isso nunca poderemos ser considerados uma força civilizacional no acesso cultural da palavra, sempre transportámos uma religião importada, mas com acontecimentos próprios, e uma língua, que apesar de diversa, mantém traços comuns.
Apesar dos génios peninsulares, e vários são os exemplos de escolas literárias onde se criaram vários estilos, casos de Camões, Gil Vicente, Lope de Veja, Cervantes, na arquitectura com estilo manuelino, na escola espanhola de pintura com Murillo, Velaquez ou Ribera, existiam grandes vestígios de decadência de uma cultura comum. Antero de Quental frisou estes aspectos na sua dissertação Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, integrada no que ficou conhecido como as Conferências do Casino, que apesar de ser essencialmente política se pode adaptar à cultura dos dois países: «Deste mundo brilhante, criado pelo génio peninsular na sua livre expressão, passamos quase sem transição para um mundo escuro, inerte, pobre, ininteligente e meio desconhecido.» e continua: «Portugueses e Espanhóis vamos de século para século minguando em extensão e importância, até não sermos mais que duas sombras, duas nações espectros, no meio dos povos que nos rodeiam!…»
Hoje quer o espanhol, quer o português, são falados por muitos milhões de pessoas em todo o mundo, tornando-as nas línguas mais usadas no planeta, mas sem uma cultura dominante, mais cedo ou mais tarde, vai ser absorvida pelas culturas dominantes, como é o caso das anglo-saxónicas, que a pouco e pouco vão penetrando nas velhas culturas europeias, nomeadamente em Portugal e em Espanha.
Nunca nenhum povo desperdiçou tantas e tão boas oportunidades de criar uma cultura dominante que poderia ombrear com as maiores, tão boa foi a influência de poetas, pensadores e artistas criadores.
Alfredo Vieira

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

O poder do amor e da metáfora

ANTEVISÃO DA NOVA OBRA DE MÁRIO MÁXIMO

É do amor que se constrói a essência da poesia
Mário Máximo em Prima Materia

O último livro de Mário Máximo Hangar de Sonhos – Odes Brancas é uma obra de introspecção, onde os sonhos e as utopias formam o conjunto natural da obra poética. Um livro virando para o interior do Poeta onde se faz uma reflexão sobre o seu íntimo, sobre as suas experiências, numa observação e descrição dos seus pensamentos e sentimentos numa forma própria de olhar o mundo. A sua nova obra, Diário de Uma Ilha Distante, apresenta-se, apesar de interior e espiritual, já com uma nova faceta que encontramos em obras anteriores como Hedonista – a sua primeira obra sobre o amor –, ou Prima Matéria, mais virada para o outro, para a atracção afectiva e física que um ser manifesta pelo outro. Esta é uma história de um imponderável amor.
Para os poetas é através da beleza feminina que o amor supremo toca o coração dos homens, tornando-o na forma mais encantadora que a natureza encontrou para a fidelidade dos amantes, através do reencontro do espírito que encarna na figura feminina. Segundo o autor é um «amor que merece as estações, todas as estações, que lhe dão forma. Aliás, um amor não é mais do que a sua história. Se não houver história não há amor digno desse nome. Pela primeira vez, na minha obra, um livro de poemas é a história de um amor. Ou será a história da metáfora (da metafísica poética) de um amor? Talvez seja apenas um amor simbólico.»
Nesta nova obra de Mário Máximo existe uma continuidade de poema para poema, como num romance, onde um capítulo se segue a um novo capítulo, dando-lhe uma estrutura que permite um encadeamento entre o leitura e toda a viagem através do que o poeta elege como fonte de comunicação substancial, aquilo a que chama de veículo, um percurso sobre a poesia onde se chega a Creta como destino de chegada e de partida. «Ela é a Ilha Distante. Ou melhor, a Ilha Distante é o amor enquanto arquétipo.»
Creta é na mitologia grega a ilha dos amores impossíveis. Foi onde Pasífae amou o touro, transformando a ilha num lugar para sombrios ímpetos, mas ao mesmo tempo ofuscantemente luminosa, onde ao cair da noite se perde o domínio sobre nós próprios, dissipando-se os seus atributos pasifaicos. Apenas as cantigas de amor compreendem o estado de espírito que considera os sentimentos de uma forma subjectiva. No poema X (pág. 15) esta expressão ganha a sua máxima dimensão: «À luz da vela ou da Lua a noite / ganha os contornos da paixão. / De onde veio este lugar ermo / onde nos ocultamos do resto do mundo? / A paixão é sempre um lugar ermo / pois apenas existem dois corpos / e dois corações. / Apenas...»
Neste regresso ao tema do amor retoma-se o tema da liberdade através da ascese amorosa, onde o seu núcleo é a mulher, mas onde os amantes se dão reciprocamente, sem recusar coisa nenhuma. «(...)Ofereces-me os seios e eu aceito-os. / Recebo-lhes a ansiedade / na minha boca. / Para que depois eles recebam a ansiedade / das minhas mãos.(…)» (LXIII, pág. 68).
Também este novo livro trás uma nova faceta de Mário Máximo, podemos encontrar uma forma poética onde a pureza cristalina sobressai. O Poeta fica ligado à pureza da terra, mas onde o elemento marítimo atinge uma forma absoluta, o poder de encanto das águas. Há nesta obra um encontro da água com a terra onde o poder do fogo, o amor, está sempre presente. Escolhe Creta por ser o lugar ideal para fazer a ligação absoluta entre os vários elementos tão queridos nas obras do autor, que evidenciou na sua introdução de Oração Pagã, o Sol, a Lua, o Ar, a Terra, a Água, o Fogo e a Poesia.
A poesia é para si uma forma de viagem, nela consegue percorrer caminhos, lugares, ilhas e cidades, onde de outra forma não chegaria. Através da metáfora conhece o mundo. Por isso, «com este Diário de Uma Ilha Distante criei mais um arquétipo dentro de mim. Através da poesia posso percorrer todos os caminhos e chegar a todos os lugares. Mesmo os lugares onde só existe o poder da metáfora!»
Em Diário de Uma Ilha Distante Mário Máximo concretiza o seu saber poético, inspiração, como lhe chama, aliando a metáfora aos elementos naturais e ao amor. Por isso, nesta obra a poesia é a palavra aliada à estética, tornando-a numa forma absoluta de arte.

LVIII

De vez em quando retornamos à ilha:
retornamos a Creta.
É uma espécie de ilha da memória:
a miragem à frente dos nossos olhos.

Todavia, nós somos reais dentro da miragem.
(pág. 63)
Alfredo Vieira

Heterónimos e pseudónimos

Há alguns anos que a questão dos heterónimos tem vindo a ser debatida nos meios académicos e nas tertúlias literários com algum fervor, até porque, à medida que iam aparecendo obras de Fernando Pessoa, mais se dissertava sobre heterónimos e sobre a sua verdade.
É certo que Pessoa apresentou uma explicação a Adolfo Casais Monteiro, numa célebre carta de 13 de Janeiro de 1935, a génese da sua escrita e o aparecimento dos heterónimos, que acabou por ser publicada num compilação de textos do poeta, nas suas obras completas, Textos de Crítica e de Intervenção, publicado pelas Edições Ática em 1993. No entanto, muito se continua a falar sobre a veracidade do que Pessoa dizia ser um «fundo traço de histeria que existe em mim», para explicar a origem dos seus heterónimos. Mas, mais que o seu estado de espírito, o importante é notar a diferença que existe entre as várias facetas do autor ou dos autores.
Quem conhece a obra de Fernando Pessoa e dos seus heterónimos consegue avaliar as diferenças profundas que existe entre os diversos nomes adoptados para cada estilo literário do Poeta. Aliás, Fernando Pessoa nessa mesma carta dá a entender a Adolfo Casais Monteiro que nunca pensou publicar as obras dos seus heterónimos, «todos eles têm de ser, na prática da publicação, preteridos pelo Fernando Pessoa, impuro e simples!». Chega mesmo a avaliar os seus heterónimos e semi-heterónimos, a sua forma de escrever e de estar na vida.
De facto, existiu um estilo em Fernando Pessoa, assim como estilo próprio em Alberto Caeiro, em Ricardo Reis e em Álvaro de Campos. São notórias as diferenças literárias entre si e o que o Poeta dizia ser a «origem mental dos meus heterónimos», que estava na sua tendência «orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação». tudo era fruto da sua inteligência, da sua forma intuitiva e criativa que «fazem explosão para dentro e vivo-os a sós comigo». Tudo terminava «em silêncio e poesia…». Tudo se passava, dizia, independentemente do ortónimo. Chegava a considerar que existiam discussões estéticas entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, e que talvez as desse à luz do dia através da sua publicação. Adolfo Casais Monteiro poderia notar as diferenças entre ambos «verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria».
Independentemente destas considerações do Poeta a Adolfo Casais Monteiro, a importância desta carta serve para se conhecer a problemática dos heterónimos e da forma discutível como se tem abordado a questão.
A heteronomia é um processo literário em que um autor escreve encarnando personalidades fictícias que representam a pluralidade da sua mundividência, aliás Fernando Pessoa reconhece que criava personagens que o acompanhavam, ditando mesmo o seu nascimento e a sua morte, essas manifestações começaram a produzir-se muito cedo, desde os seis anos criou um heterónimo, Chevalier de Pas, que escrevia cartas a Pessoa. Os heterónimos são diferentes dos pseudónimos, são personalidades poéticas completas: identidades, que, em princípio falsas, tornam-se verdadeiras através da sua manifestação artística própria e diversa do autor original, e isto manifesta-se no Poeta, independentemente de existir uma mudança de personalidade, como algumas vezes Pessoa quer fazer crer.
Nos últimos anos têm aparecido obras onde se admite que os seus autores têm alterações de personalidade, de comportamento e de escrita, podendo levar a pensar a existência de heterónimos, quando na realidade não passam de simples pseudónimos que os autores utilizam em formas literárias diferentes. E quando se fala em formas literárias diferentes pensamos, por exemplo, em Rómulo de Carvalho, que adoptou como pseudónimo poético o nome de António Gedeão, enquanto que o nome de baptismo serviu de chancela a livros técnicos.Há que distinguir quem tem efectivamente heterónimos, de quem tenta passar para os leitores a existência na sua génese literária de obras com características e tendências próprias, diversas do autor verdadeiro, muitas vezes nem existem outras obras para comparar a diversidade e a diferença de tendências. Por isso, não se pode falar de heteronomia. E, neste aspecto, a crítica especializada tem o papel importante de desmistificar o aproveitamento que se faz da palavra, distinguindo heterónimos de pseudónimos, porque, de facto, existem heterónimos do ortónimo Fernando Pessoa, e, até hoje, apesar se pressupor a existência de outros autores com características e tendências diversas, o certo é que não foi ainda possível encontrar a diversidade e a unidade do Poeta.
Alfredo Vieira