segunda-feira, 20 de outubro de 2008

O mistério das relações humanas

O primeiro romance realista da literatura universal foi escrito em 1719 por Daniel Defoe (1660-1731) e influenciou um conjunto de autores, que, melhor ou pior, têm aproveitado essa experiência para criarem obras, algumas delas de grande valor para a humanidade. O livro em questão é A Vida e as Estranhas e Surpreendentes Aventuras de Robinson Crusoe, um dos textos chaves da Modernidade – normalmente conhecem-se as edições juvenis que agrupa essencialmente a estada na ilha. Depois da saída deste romance, e devido ao seu sucesso, um conjunto de títulos na mesma linha deram origem a uma autêntica robinsonmania, muitos desses títulos são meras imitações. Contudo, autores há que aproveitarem essa espectacular obra para criarem grandes romances, entre essas grandes obras encontrasse O Rei das Moscas de William Golding (1911-1993), editado em 1954, tornando-se um clássico de textos escolares.
O Deus das Moscas é a história de um conjunto de crianças, algumas a entrar na adolescência, que viajam num avião que se despenha numa ilha deserta, ficando esse grupo por sua conta sem o cuidado de qualquer adulto. Ao princípio tudo foi brincadeira e liberdade, por fim degenera em violência extrema.
É através do som da casca de um búzio que o grupo se junta, passando essa casca a ser o símbolo do poder, a quem é passado o búzio têm o poder de falar nas assembleias, sendo o chefe aquele a quem a assembleia entrega a casca. Desde início que se nota uma tensão entre dois adolescentes, um que encontra o búzio e outro que lidera um grupo de crianças de capa e boné, um coro musical, sendo ele o corista do capítulo. Essa tensão manifesta-se na primeira reunião e vai prosseguir durante toda a acção. Primeiro esse grupo de crianças é conhecido por caçadores, são eles que caçam para os restantes, mais tarde vão aparecer como os selvagens, tal é a ferocidade que colocam nas suas acções.
Golding deixa o supérfluo e vai ao essencial: o princípio das relações humanas e os jogos de poder, a luta pela liderança que se começa a travar desde tenra idade, mesmo que para isso haja necessidade de matar. Estes instintos perversos, mas naturais, são essenciais para a sobrevivência do ser humano em ambientes inóspitos, se bem que no caso de O Deus das Moscas, as crianças poderiam organizar-se em torno de objectivos que eram comuns aos dois líderes dos grupos: o caçar e o fogo. Por um lado a necessidade imediata da sobrevivência, por outro o fogo como forma de cozinharem os alimentos e serem vistos por barcos que passassem ocasionalmente pela ilha perdida.
Mesmo saídos de um país civilizado os jovens e as crianças mostraram os seus instintos mais primários impróprios da educação selectiva que levavam. O oficial que acaba por os salvar reconhece que para um grupo de miúdos britânicos deveriam de se organizar melhor.
Esta é uma metáfora excelentemente conseguida por William Golding, fácil de ler e que representa a instabilidade da evolução do homem e da relação entre jogos de poder, o medo e violência.
Golding acabaria por receber o Prémio Nobel da Literatura em 1983.
Alfredo Vieira

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Cultura e ensino em Portugal

O desenvolvimento de um país vê-se pelo grau de escolaridade da sua população.
A discussão sobre o tema da educação prolonga-se desde os primórdios, nomeadamente no berço da civilização moderna nascida na antiga Grécia. Platão e Aristóteles foram os primeiros a dedicar-se ao tema, colocando o ensino das letras a toda a população como mote de uma filosofia que emergia no mundo.
Em Portugal, e vários séculos passados, é o pedagogo Luís António Verney quem propõe uma reforma do ensino, numa obra que publica anonimamente sob o título de Verdadeiro Método de Estudar, na centúria de XVIII. Apesar de não conseguir ver publicados todos os volumes que constituíam a obra programada, dela são conhecidos alguns volumes datados de meados do século que se prolongam até 1769. Esta reforma, revolucionária e polémica, acaba por granjear a Verney algumas inimizades que acabam por o levar ao exílio forçado.
Mais tarde, a Geração de 70 coloca na ordem do dia a questão cultural e apresenta algumas propostas para o desenvolvimento da educação dos portugueses. A implantação da República abre grandes perspectivas aos intelectuais e aos governantes republicanos progressistas da época, contudo as graves crises sociais e políticas que se sucedem umas atrás das outras acabam por secundarizar um dos problemas mais graves da sociedade portuguesa, apesar da abertura de inúmeras escolas republicanas, que ainda hoje existem no país, nomeadamente na cidade de Lisboa.
Os neo-realistas, sobretudo o núcleo vilafranquense, colocam novamente a questão da educação na ordem do dia e através dos sindicatos criam cursos nocturnos de alfabetização, muito devido à tenacidade de Alves Redol e Dias Lourenço, no entanto, o regime fascista acaba por cercear, através de leis repressivas e invasão dos locais de instrução pela PIDE, esse desejo dos intelectuais ribatejanos.
Com a Revolução de Abril novas esperanças se abrem. Criam-se escolas nocturnas, cursos de alfabetização. O próprio Movimento das Forças Armadas apoia esse esforço nacional de levar a escola aos mais recônditos lugares do país. É implementado o serviço cívico, que para além de outras atribuições, desenvolve a alfabetização. Estamos em um dos países mais atrasados da Europa, pois mais de sessenta por cento da população portuguesa é analfabeta na década de setenta, quando nos países desenvolvidos se discutia o aumento da escolaridade obrigatória.
Rapidamente o governo regulariza o ensino para adultos em horário extra-laboral, cria cursos para trabalhadores-estudantes, que ao longo dos anos vai retirando à área curricular matéria, tornando mais fácil aos portugueses adquirirem graus de escolaridade, que, na prática, não se tornou em mais formação profissional e cívica. Cria-se a ilusão aparente da diminuição do analfabetismo, quando, na realidade, quem termina o ensino secundário nocturno tem grandes dificuldades ao ingressar no ensino superior.

Após trinta anos de expectativa, por parte dos intelectuais portugueses, no aumento do nível cultural dos portugueses, o certo, é que aposta dos governos que se sucederam foi na obra visível, ou seja, o país começou a construir-se pelo telhado. Enquanto nos países que, tal como Portugal, acabavam de aderir à então Comunidade Económica Europeia apostavam na educação, no ensino e na cultura, em Portugal apostava-se na construção de auto-estradas (vide o caso da Irlanda).
Parece que começa a existir uma inversão da aposta dos políticos portugueses e a educação acaba por estar mais uma vez na agenda política nacional, com medidas de que muitos ainda duvidam da sua eficácia.
Ainda temos muito a aprender com os países desenvolvidos e com os novos países que acabam de aderir à União Europeia. No entanto, os responsáveis pelas reformas, se é que de reformas se tratam, têm de ouvir quem está no círculo, ou seja, o governo tem de ouvir os professores, profissionais que têm feito milagres, devido às dificuldades que são constantemente colocados no exercício da sua profissão, e com os meios que são colocados à sua disposição. De uma vez por todas tem de se colocar em prática o Luís António Verney que propôs no século XVIII, uma verdadeira reforma do ensino nacional, baseada no ensino do português e dos grandes mestres da cultura portuguesa, pois essa é a base da compreensão de todas as ciências. Sem um verdadeiro desenvolvimento intelectual das nossas crianças e jovens e do conhecimento da sua língua materna não existe verdadeiro desenvolvimento do nosso país.
Alfredo Vieira

terça-feira, 23 de setembro de 2008

NOVAS OPORTUNIDADES PERDIDAS

Recentemente tive algumas experiências com pessoas que obtêm escolaridade através do chamado programa Novas Oportunidades ou através dos cursos de formação profissional do IEFP.
Apesar de achar louvável que se erradique o analfabetismo, se aumente o grau de escolaridade, se dê mais competência e formação profissional, penso que esta não é a melhor solução, mantêm-se a iliteracia e as dificuldades de compreensão da língua materna.
Quer o programa Novas Oportunidades, quer a formação profissional, acaba por criar falsos índices de escolaridade, servem só para as estatísticas da União Europeia.
Como comecei por escrever ia dissertar sobre as experiências que tive com pessoas saídas desses programas, talvez seja essa a melhor forma de elucidar o que quero transmitir.
Uma pessoa apresentou-se a uma entrevista para emprego com um certificado de habilitações onde constava o nono ano de escolaridade e um curso de cozinheira. Quando li o currículo e a ficha de inscrição estes vinham carregados de erros ortográficos, frases mal construídas; numa ficha de leitura sobre uma receita de culinária a pessoa não entendia o que se pedia, nas explicações sobre a confecção do prato baralhou tudo, não sabia por onde começar, diga-se que a receita era complicada de executar, mas para uma pessoa com o nono ano e um curso de cozinheira deveria ser fácil. Convém dizer, para melhor compreensão, que a pessoa em questão tinha quarenta e cinco anos e quando iniciou a formação profissional as suas habilitações literárias eram o quarto ano concluído há cerca de trinta e cinco anos. É óbvio que não vou julgar a pessoa, até porque não tenho esse direito, nem a condenar por o Estado lhe dar um certificado de habilitações que não corresponde à verdade. Como profissional a pessoa era auto-suficiente, devidamente acompanhada por uma cozinheira com experiência na empresa, mostra-se empenhada, com regularidade pontual e uma evolução profissional muito boa, até porque sabe ser esta uma das últimas oportunidades de integrar o mundo do trabalho.
Esta pessoa acabou por me demonstrar o artificialismo que o Estado Português usa para mostrar níveis de escolaridade, ou melhor, de conhecimentos que não existem no país.
Depreende-se por habilitações os índices de estudo, conhecimento e literacia, por isso se chamam habilitações literárias, e não as competências profissionais; para julgar e compensar os trabalhadores existem as carreiras profissionais.
De forma nenhuma sou contra estes cursos de formação profissional, bem pelo contrário, sou contra que eles servirem só para as estatísticas. Para isso dever-se-ia acompanhar essas acções com aulas complementares de português, línguas estrangeiras, acção cívica e uma ou outra disciplina escolar correspondente à área de formação.
Está-se a criar artificialismos que mais tarde poderemos pagar caro. Os estudantes, que têm de passar nove e dez horas nas escolas, onde os pais têm de pagar pelos livros, pelo material escolar, pelos transportes e pelas refeições, acabam por abandonar a escola e esperam por uma dessas acções de formação, até porque auferem subsídios de toda a ordem e o trabalho intelectual não é grande.
Em conclusão: estas iniciativas de formação contínua são de aplaudir, mas devem ser acompanhadas com outras disciplinas que não só as profissionais; a integração neste universo de ensino deve servir para pessoas que estão desempregadas, ou com dificuldades de aprendizagem e integração na escola tradicional. Perante uma avaliação idónea, onde os formandos tenham, de facto, aproveitamento, conheçam pelo menos a língua portuguesa, então sim atribuir-se um certificado de habilitações. Para as pessoas que terminam estes cursos profissionais, nos moldes actuais, entregue-se um diploma que ateste as suas capacidades para exercer a profissão.
Alfredo Vieira

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Mário Máximo o segredo das utopias

Um dia recebi um livro em casa que me animou a atenção pela sua capa, que isto de apresentação das capas é muito importante, as editoras inglesas e americanas são peritas na estética das capas como forma de promoção dos livros, o título pouco me dizia, contudo comecei a lê-lo e de forma automática os espaços livres nas páginas encheram-se de apontamentos e anotações que me ocorriam sobre o que estava a decifrar. Desconhecia completamente o autor, nunca lera nada dele, mas o interesse que me despertou apontou-o logo como um dos melhores poetas contemporâneos que me fora dado a ler.
Trata-se de Oração Pagã. Assim entrei em contacto com a obra de Mário Máximo.
Durante um bom par de anos desconheci por completo o percurso literário de Mário Máximo, que, entretanto, publicara o seu romance A Ilha e um novo livro de poemas: Prima Materia. Um dia na redacção do Triângulo (Jornal Regional) foi-me proposto fazer uma entrevista ao homem que estava ligado ao CESDIS e a outras tertúlias culturais, assim como ao movimento político de Odivelas. Conheci-o pessoalmente no Odivelas Parque e no meio de todo aquele barulho conseguimos conversar. Falámos de utopias, da globalização, não desta globalização que conhecemos, mas da globalização dos povos, falámos de literatura, sobretudo de poesia. Nesse dia 10 de Janeiro de 2004 descobri que tínhamos algo em comum. Ao ler a introdução da Prima Materia fiquei a saber da sua paixão pelas viagens, nomeadamente por Paris, a minha capital de eleição, Santiago de Compostela, lugar místico, numa mistura de fé e paganismo, cidade de retiro e meditação. Podemos não estar de acordo sobre a serra da Lousã, talvez por não conhecer bem a serra, mas com certeza que não a vou trocar pela ilha de São Miguel, o paraíso em pleno Atlântico. Da Grécia e das suas ilhas fica o mitológico e o berço da civilização moderna.
Dai continuou a minha admiração pelo seu trabalho literário, que tenho a vindo a descobrir com agradável surpresa, até pelos momentos de prazer que as suas obras me proporcionam, já que vivo sobre a doce tirania das artes, do belo.
Noto na obra de Mário Máximo a sua paixão por ilhas, quer no seu romance quer agora em Diário de Uma Ilha de Distante. Esta sua paixão advém dos seus sonhos, ou melhor, das suas utopias. Este seu apego às utopias começam com Thomas Moore, da sua ilha e do navegante de origem portuguesa, que encontra o lugar, não direi idílico, mas ideal para viver: a Ilha da Utopia. De seguida leva-nos até A Nova Atlântida de Francis Bacon e recebe-nos no seu encontro com o vale de Xangri-La, em o Horizonte Perdido de James Hilton, esse sim lugar idílico, local mágico de eterna juventude e longa felicidade, que se perde quando se passa para este lado, o verdadeiro mundo, o real, onde já não existem utopias.
Mário Máximo, contudo, continua a acreditar nas utopias, apesar de estas serem inatingíveis para a maioria dos mortais, mas para os poetas essa é uma sua luta constante e heróica, uma luta consigo próprio, desesperante, por isso continua a crer no amor, marca que deixa sempre nas suas obras.
O penúltimo livro de Mário Máximo Hangar de Sonhos – Odes Brancas é uma obra de introspecção, onde os sonhos e as utopias formam o conjunto natural da obra poética. Um livro virando para o interior do poeta onde se faz uma reflexão sobre o seu íntimo, sobre as suas experiências, numa observação e descrição dos seus pensamentos e sentimentos numa forma própria de olhar o mundo. A sua nova obra, Diário de Uma Ilha Distante, apresenta-se, apesar de interior e espiritual, já com uma nova faceta que encontramos em obras anteriores como Hedonista – a sua primeira obra sobre o amor –, ou Prima Matéria, mais virada para o outro, para a atracção afectiva e física que um ser manifesta pelo outro. Esta é uma história de um imponderável amor.
Para o poeta é através da beleza feminina que o amor supremo toca o coração dos homens, tornando-o na forma mais encantadora que a natureza encontrou para a fidelidade dos amantes, através do reencontro do espírito que encarna na figura feminina. Segundo o autor é, e cito, um «amor que merece as estações, todas as estações, que lhe dão forma. Aliás, um amor não é mais do que a sua história. Se não houver história não há amor digno desse nome. Pela primeira vez, na minha obra, um livro de poemas é a história de um amor. Ou será a história da metáfora (da metafísica poética) de um amor? Talvez seja apenas um amor simbólico.»
Neste novo livro de Mário Máximo existe uma continuidade de poema para poema, como num romance, talvez seja mesmo um romance em forma de poética, onde um capítulo se segue a um novo capítulo, dando-lhe uma estrutura que permite um encadeamento entre a leitura e toda a viagem através do que o poeta elege como fonte de comunicação substancial, aquilo a que chama de veículo, um percurso sobre a poesia onde se chega a Creta, como destino de chegada e de partida. Pode ser outra ilha qualquer, um nome que o poeta guarda para si, mas que promete um dia revelar. «Ela é a Ilha Distante. Ou melhor, a Ilha Distante é o amor enquanto arquétipo
Creta é na mitologia grega a ilha dos amores impossíveis. Foi onde Pasífae amou o touro, transformando a ilha num lugar para sombrios ímpetos, mas ao mesmo tempo ofuscantemente luminosa, onde ao cair da noite se perde o domínio sobre nós próprios, dissipando-se os seus atributos pasifaicos. Apenas as cantigas de amor compreendem o estado de espírito que considera os sentimentos de uma forma subjectiva. No poema X esta expressão ganha a sua máxima dimensão: «À luz da vela ou da Lua a noite / ganha os contornos da paixão. /De onde veio este lugar ermo /onde nos ocultamos do resto do mundo? /A paixão é sempre um lugar ermo /pois apenas existem dois corpos /e dois corações. /Apenas...»
Neste regresso ao mote do amor retoma-se o tema da liberdade através da ascese amorosa, onde o seu núcleo é a mulher, mas onde os amantes se dão reciprocamente, sem recusar coisa nenhuma. «(...)Ofereces-me os seios e eu aceito-os. /Recebo-lhes a ansiedade /na minha boca. /Para que depois eles recebam a ansiedade / das minhas mãos.(…)» (LXIII, pág. 68).
Também este novo livro trás uma nova faceta de Mário Máximo, podemos encontrar uma forma poética onde a pureza cristalina sobressai. O poeta fica ligado à pureza da terra, mas onde o elemento marítimo atinge uma forma absoluta, o poder de encanto das águas. Há nesta obra um encontro da água com a terra onde o poder do fogo, o amor, está sempre presente. Escolhe Creta, ou outra ilha qualquer «ou a ilha onde todos os seus sonhos parecem / cristais verdadeiros.», por ser o lugar ideal para fazer a ligação absoluta entre os vários elementos tão queridos nas obras do autor, que evidenciou na sua introdução de Oração Pagã, o Sol, a Lua, o Ar, a Terra, a Água, o Fogo e a Poesia.
A poesia é para si uma forma de viagem, nela consegue percorrer caminhos, lugares, ilhas e cidades, onde de outra forma não chegaria. Através da metáfora conhece o mundo. Por isso, e cito, «com este Diário de Uma Ilha Distante criei mais um arquétipo dentro de mim. Através da poesia posso percorrer todos os caminhos e chegar a todos os lugares. Mesmo os lugares onde só existe o poder da metáfora!»
Para conhecer e compreender melhor a sua poesia é necessário ler o seu romance A Ilha, nele encontramos todas as respostas para as perguntas que nos assaltam, porque ali estão todos os seus livros. Para quem teve oportunidade de ler todas as suas obras poéticas e agora Diário de Uma Ilha Distante notem se estas frases retiradas do romance não correspondem, de facto, a esta afirmação:
«Se uma leitura de poesia fosse um hábito no seu quotidiano saberia entender o que é uma revelação. Assim como poderia entender o poder de uma metáfora.»
«A sociedade que deixámos perde, em cada dia que passa, a dimensão do romance. Esse romance global que é o caminho único para o tal fim único: o amor. A impoderabilidade está a ser afastada dos quotidianos das sociedades. E a previsibilidade, sua condição antípoda, líquida o romance que exista, não sendo permitido que romance algum comece.» (Pedro Amaro, personagem poeta)
«O nó que não se consegue encontrar é a utopia! Vivemos uma era sem utopia. E se dermos como certo, por definição, utopia é o inatingível, daremos também como certo que o limite que se tende, jamais se alcançando. Isto é, aquilo que relativiza o seu desespero, o meu desespero ou o desespero de qualquer mortal, e o torna suportável. A luz perene que torna todo o sofrimento plausível e heróico. O sentido das coisas.» (Pedro Amaro)
«A preocupação comum tinha um nome: arte. Enquanto que a preocupação dos outros homens resume-se a outra palavra de quatro letras, só uma delas, porém, sendo comum: vida.»
« (uma obra prima é) A interior imperfeição da alma do homem. E a verdadeira arte não é mais do que um hino de cada homem a essa condição.»
«O que os artistas procuram com a sua arte, seja ela qual for, é transcenderem-se e encontrarem o ponto da sua íntima resolução.»
Outra das características da obra de Mário Máximo é a perfeita análise psicológica do homem e da mulher, não só nas suas personagens, pois toda a sua obra reflecte o que é, apesar de ser o que não devia ser, o homem moderno.
Mas em Diário de Uma Ilha Distante, apesar de não abdicar dessas premissas, Mário retoma com alegria literária o tema do amor e da vida, para isso cerca-se de água como tanto gosta. Interroga-se e interroga, procurando respostas na poética e nas sensações, Afinal aquele amor, aquela mulher, nasce assim como se dada à luz em seus sonhos, conquanto «A paixão é sempre um lugar ermo / pois apenas existem dois corpos / e dois corações.», se nesse lugar ermo não existe a sua paixão, se ela não está pintada como em um quadro de Picasso, não existe a felicidade, ou seja a tela não está completa, mas se o amor está presente a obra de arte é toda da sua autoria. Eles são os autores de tudo.
Este novo livro obrigou-me a reler o seu romance e em ambos as analogias são constantes, os lugares, o mar, os segredos, as casas, o amor, a vida, tudo. Se não reparemos, em Diário de Uma Ilha Distante encontramos este poema «Agora resta-nos contornar a miragem / e descobrir o lugar / da ilha da nossa utopia.», no romance lesse «Enquanto houver uma Ilha dentro da Ilha, a utopia terá lugar!». Não será esta composição poética a continuação do amor elevado ao sublime entre Guilherme e Maria Miranda?
Para terminar resta sublinhar que nesta obra Mário Máximo homenageia Natália Correia, uma das suas poetisas de eleição e uma das grandes poetas nossas contemporâneas, apesar de já desaparecida.
Tudo aconteceu como se fosse
aquela ilha que Natália invocava.
“Foi em Creta”, podia eu dizer
como ela o disse um dia escrevendo-o
e foi. Para mim foi em Creta.

Foi em Creta que pude receber
o teu olhar de amêndoa.
O teu estremecer de pequeno peixe
fora de água.
Os teus murmúrios de paixão.

Foi em Creta, Natália.
Foi também nessa ilha de mítico recorte
que algo de sublime
me aconteceu.

Em Diário de Uma Ilha Distante Mário Máximo concretiza o seu saber poético, inspiração, como lhe chama, aliando a metáfora aos elementos naturais e ao amor. Por isso, nesta obra a poesia é a palavra aliada à estética, tornando-a numa forma absoluta de arte. Por isso, a sua grande riqueza é as palavras. Não é de ouro o silêncio. São de ouro as palavras que guarda nas páginas dos seus livros e que nos transmite.
Alfredo Vieira

domingo, 14 de setembro de 2008

Poesia fórmula absoluta de arte

Foi pedido pelo meu caro amigo Oscar Martina o encargo de dissertar sobre a relevância da poesia nos dia de hoje, qual o tipo de intervenção que o poeta deve ter junto dos leitores, a forma de interpretar a poesia e qual o conceito de criatividade. Desde já agradeço a sua lembrança e espero corresponder, na medida das minhas limitações, ao pedido feito, não o pude recusar, já que se trata de um amigo, que está inserido num grupo de poetas que me é muito caro, pois aceitaram-me no seu seio desde a primeira hora, dando-me a honra de prefaciar o primeiro livro da sua tertúlia. Não vou seguir preceito pedido, preferi encadear todos os temas tornando mais fácil a sua interpretação por toda a plateia. Espero não os maçar muito.
Roman Yakobson, numa magnífica lição proferida em 1968 na Universidade Clássica de Lisboa disse: «Como se sabe a palavra poesia é de origem grega, prende-se a um verbo que significa criar e, na verdade, a poesia sendo o único aspecto criador, é o domínio mais vasto da linguagem. Quanto à palavra verso, tem a mesma raiz que prosa, visto que a prosa deriva de provorsa, proversa; oratio proversa é aquele que caminha resolutamente em frente, com uma direcção estrita. Além disso, versus quer dizer retorno, um discurso que comporta regressos – e penso ser este um fenómeno fundamental de que podemos tirar grande número de ilações». O verso é o que é feito de quebras, retornos e regressos, desenhando assim um perfil de ocupação de páginas em branco. Se a prosa se presta para dizer continuidades, o verso serve para as descontinuidades.
Por isso há momentos na vida em que se descobre algo dentro de nós que se encontrava escondido ou reprimido, vozes que muitas vezes não se querem ouvir, mas algum dia despertam da sua letargia e se tornam mais fortes que o ser humano que as transporta. A poesia está dentro de nós a incubar, como bicho que nos vai corroendo e qual doença que se manifesta, emerge, e nesse dia nada há a fazer senão agarrar na pena e escrever o que nos vai na alma. É deixar avançar o espírito, já que ele conduz a mão, e soltar o brotar das palavras. Fala-se de amor, mas não se esquecem os dramas sociais, nem o passado glorioso deste povo, assim como da civilização cristã, da qual indubitavelmente fazemos parte. Como é natural, não é só a inspiração que nos leva à criatividade, a leitura da grande poesia e dos grandes poetas portugueses é essencial para a sua compreensão e a melhor forma de aplicar a nossa criatividade, não devemos sentir-nos tentados a copiar estilos literários, devemos sim apostar na inovação, na novidade.
A poesia só é absoluta expressão de criatividade quando permite ao leitor a abertura de portas que, para ele, são essenciais para se afirmar como SER, sobretudo como SER superior, um SER que está na posse, não apenas de uma consciência, mas também de um lugar fundamental no seio da comunidade onde vive.
O sujeito poético integrasse no contexto temporal em que vive, pelo que seria impensável a elaboração de um poema como Os Lusíadas no século XXI. A expressão poética é filha do seu tempo, é uma consequência directa da contingência histórica.
Daí a grande força da poesia portuguesa: a sua qualidade criativa, onde muitos poetas diferem, mas ao mesmo tempo cria uma enorme unidade em torno dessa mesma poesia. Esta é também uma das funções sociais da poesia: a unidade na diversidade de um povo.
Contudo, várias são as funções sociais da poesia na formação dos povos, primeiro com a tradição oral, onde se transmite de geração em geração, através da narração, os feitos heróicos dos antepassados, enfabulados ou ficcionados, mas que ajudavam à memória dos povos. Depois, com o aparecimento da escrita foi possível postar parte desses testemunhos para a posteridade.
Na tradição oral a forma versejada servia para uma memorização mais fácil das epopeias, pelo menos no seu essencial. A escrita poética acabou por revolucionar a vida das civilizações, servindo no aspecto cultural, mas também no aspecto social e económico – muitos tratados de astronomia e agronomia, por exemplo, foram escritos em formas versejadas, assim como na medicina e na religião, ao serem criadas em forma rimada lengalengas, rezas, mezinhas. Com o aparecimento da prosa os tratados passaram a utilizar esta como forma literária, ou seja, o poema, cujo objectivo é a transmissão de informação foi substituído pela prosa, mantendo, contudo, a poesia para as epopeias, cantigas e para o drama teatralizado, entre outras utilizações.
É a partir destes desenvolvimentos que a poesia cumpre parte da sua função social como fonte de prazer e de conhecimento. Se não proporcionasse prazer, se não transmitisse sentimentos, então não cumpria os seus desígnios, acabando por não se sentir o seu efeito social. A poesia que dá prazer acaba por influenciar mesmo aqueles que não a lêem.
No entender de Eliot «a poesia difere de todas as artes, em possuir um valor, para os que pertencem à mesma raça e falam a mesma língua que o poeta», por isso a poesia adquire um carácter de identidade nacional, onde os naturais desse idioma sentem e tomam os poetas como seus (casos de Camões e Pessoa, para só falar dos nossos poetas maiores), entendendo-os melhor que aqueles que não se expressam na mesma língua. A poesia traduzida não tem, muitas vezes, o mesmo sentimento que lida pela língua de origem. É neste contexto que a poesia se transforma em parte de um processo civilizacional, quando deixa de ter uma influência directa sobre um povo essa cultura começa a ser absorvida por outra superior. Neste pressuposto o poeta tem o dever de promover a sua língua em primeiro lugar para a conservar e seguidamente para a alargar e melhorar, devendo chegar às pessoas, de forma a alterar os sentimentos, tornando o seu povo mais consciente, dando-lhe a conhecer a sua história, mas, ao mesmo tempo, dentro de um processo evolutivo da língua e da civilização em que está inserido, acabando o poeta por ter de se aperceber da evolução do mundo. Se isto não acontecer vaticina-se o pior para as línguas e para as civilizações, se não continuarem a surgir grandes autores e principalmente grandes poetas, a língua decairá, podendo a literatura dos nossos antepassados chegar ao ponto de ser completamente estranha e desaparecer.
Partindo deste princípio as boas obras são intemporais, mas para que tenham esse carácter de intemporalidade têm de haver novos autores que persigam a tradição dos seus antepassados, sobretudo os poetas. Devem estar à frente do seu tempo, permitindo trazer novidade à literatura, assim como às outras artes. É este aspecto que leva a que os grandes poetas não sejam, muitas vezes, reconhecidos pelos seus contemporâneos, mas, nas gerações seguintes. Os grandes poetas têm o dever de influenciar os novos escritores.
Na realidade a função social da poesia é «o facto de ela afectar, proporcionalmente à sua excelência e vigor, o falar e a sensibilidade de toda a nação» (T. S. Eliot). No entanto, considera-se que a poesia, apesar da identidade nacional que experimenta, não se deve perder de todo o encadeamento continental e mundial, se um país perde a sua poesia e os seus poetas pode ser todo um continente ou toda a humanidade que perde a sua identidade. «O começo de um declínio, que significaria que em toda a parte os homens iriam deixar saber de expressar-se e, consequentemente, deixariam de ser capazes de sentir as emoções de seres civilizados.» (T. S. Eliot)
A poesia é uma forma de estética e de beleza no seu olhar sobre mundo e da sua evolução civilizacional. Fazendo parte de todo um processo evolutivo, muito os povos lhe devem como arte, já que ela é considerada por muitos como a sua forma suprema, sobretudo nas áreas literárias. A poesia cumpre, enquanto forma perfeita de trabalhar as palavras, funções sociais muito importantes, como são o conhecimento da história, mesmo que ficcionada, como forma de comunicação, permitindo a evolução linguística de uma comunidade, mas, essencialmente, o que a poesia dá aos povos, sobretudo aos naturais da língua, é uma grande fonte de prazer. Mesmo que muitos não a leiam ela faz parte do saber, da formação cultural e da sua identidade enquanto povo e enquanto nação. A língua portuguesa leva mais longe esses desígnios e consegue expandir essa função social aos países com quem contactou e influenciou culturalmente durante séculos, pois os povos dos países falantes da língua portuguesa entendem de uma forma especial a poesia produzida por essa comunidade linguística, servindo como ponto essencial de ligação cultural e social desses povos, tão diferentes, mas tão iguais, pelas raízes que adquiriram em comum, também através da poesia.
Sendo a poesia a expressão da palavra essencial, como nos diz Adolfo Casais Monteiro, cabe ao poeta, segundo Eliot, a obrigação de explorar, de procurar os signos, ou palavras, para o inarticulado, de buscar sentimentos que todos nós mal podemos sentir, porque não têm palavras para eles; e, ao mesmo tempo, recorda que o explorador para além fronteiras da consciência comum só poderá regressar e contar o que viu aos seus semelhantes, se tiver sempre uma completa percepção das realidades que eles já conhecem.
Se a poética foi personalizada, mostrar as emoções e os sentimentos, com tempo vai dissipar-se, não marcando mais que um período vago, acabando por não trazer nada de novo ao panorama literário. Ao mesmo tempo muitos críticos, e essa tendência nota-se mais no jornalismo, têm a aptidão de analisar a vida do autor, colocando-a em concordância com a sua obra, chegando ainda a relegar essa mesma obra para segundo plano. O mundo das emoções pessoais, da vivência social, não é, ou não deve ser perceptível na escrita – o que não quer dizer que não possa ser aplicada. A vida do poeta pode ser banal, como o de qualquer outra pessoa, contudo o seu espírito criativo é algo que se transcende quando se cria a obra. Foge ao fútil, ao quotidiano e é partindo deste pressuposto que o poeta é notável e interessante. A forma como se encara a poesia deve deixar transparecer o que não é natural para os homens, o que não é óbvio e singular, deve ser-se consciente e inconsciente, não tornando a obra pessoal, apesar do poeta se rever nela. O que está no verso pode ser tudo, posso ser eu, podemos ser todos, mas, ao mesmo tempo, não ser ninguém.
O que se deve distinguir é a obra, não o autor e a sua vida, ou seja, o artista mais perfeito e que pode produzir uma obra de arte é aquele que consegue separar a arte do homem. Tudo o que o poeta precisa para escrever a sua obra vai-se formando no seu espírito, até criar uma unidade que possa ser formada e transmitida na sua nova obra.
Além do mais os poetas contemporâneos têm hoje à sua disposição um privilégio, o de poderem escolher entre três subgéneros do género a que se dedicam, a poesia lírica. São eles o poema em verso (medido, livre, rimado ou sem rima), o poema em prosa e o poema visual.
Esta situação, que veio sendo preparada ao longo do século XX, mas que teve início em meados do século XIX, resulta da acção de movimentos de vanguarda que produziram a erosão de conceitos clássicos da concepção e da construção dos poemas líricos no mundo ocidental. Não se trata de uma sistematização formal, mas sim, o reconhecimento de diferentes estéticas escriturais da poesia que hoje coabitam universalmente no espaço da emoção e da invenção.
A grande riqueza da poesia é transformar o esperado no inesperado, juntar conceitos, mas, ao mesmo tempo provocar a sua desconexão, numa mistura de sensibilidades e imaginação pessoal ao serviço da inteligência estética, ou seja, a poesia é a palavra aliada à estética, tornando-a numa forma absoluta de arte.
Alfredo Vieira

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

A imprensa portuguesa e as eleições americanas

Começamos por abrir os jornais, os sítios da comunicação social na internet, deparamo-nos com inúmeros textos de opinião sobre as eleições americanas, os candidatos a presidente e a vice-presidente. Escreve-se sobre tudo, sobre as opções e o posicionamento político nacional e internacional dos vários intervenientes – o que é de louvar, pois estamos perante uma das maiores potências do mundo, onde se joga muito do que se pode passar no mundo –, mas depois comenta-se todos os fait-divers, como a saia de uma senhora, os óculos de outra, o tempo que um foi aplaudido em relação ao outro, a vida pessoal dos candidatos é esquadrinhada a régua e esquadro.
Será que não há nada de mais importante para se comentar? Não se deveria deixar esses temas para os jornais americanos especializados, os chamados tablóides? É que existem tantos problemas no país para comentar que me faz confusão os órgãos de comunicação social, que tenho por sérios, pagarem avenças, muitas delas chorudas, para publicar assuntos que não o são.
Se passarmos os olhos pelos jornais de referência internacionais não encontramos tantos artigos, quer de opinião, quer de actualidade, sobre as eleições americanas como os portugueses. É óbvio que dedicam atenção, pois trata-se de umas eleições importantes, mas dão especial destaque aos assuntos nacionais, os comentadores opinam sobre os temas do país. Em Portugal, com tantos problemas, como o desemprego, os baixos níveis salariais, as reformas de miséria, a insegurança, a justiça, a corrupção generalizada, as elevadas taxas de impostos, das mais altas da Europa, o custo dos derivados do petróleo, a deslocalização de empresas e encerramento de outras, reformas sociais importantes por fazer, os nossos fazedores de opinião só se lembram de escrever sobre os candidatos, as esposas dos candidatos, as filhas dos vice-candidatos, dos seus óculos e da sua roupa.
Deveriam as direcções dos órgãos informativos ponderar, sem retirar a liberdade de informação e de escrita, olhar para este pobre país tão mal governado e tão mal informado, pois continuamos a abrir telejornais, a fazer manchetes de assuntos internacionais que nos outros países a informação não dedica mais de poucos segundos.
Alfredo Vieira

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Homens e mulheres de “cultura”

Entre os homens e mulheres de cultura é habitual, quando não estão de acordo, esgrimirem argumentos, trocarem opiniões…, no fundo, terem discussões mais ou menos acaloradas, mas sem nunca chegarem ao insulto, pelo menos directo. Existe dentro da ética cultural muitos argumentos (por isso essas pessoas são munidos de vasto conhecimento e profundo saber, dotados de uma moral superior que lhes permite escrever e debater sem agredirem, de qualquer forma, os seus oponentes, ou contendores). O caso exemplar é a célebre questão coimbrã (polémica discussão sobre o Bom-Senso e o Bom-Gosto, que opôs os defensores do Realismo e do Naturalismo), com a carta de Antero de Quental a Feliciano Castilho. Isso, de facto, deveria ser a postura ética das pessoas de cultura. Mas o mundo está a mudar e já não é assim.
Alguns homens e mulheres de cultura para puderem viver condignamente dedicam-se a outras ocupações, pois só o trabalho em prol da cultura, em prol dos outros não permite ninguém sobreviver quanto mais viver condignamente. Então, alguns, quando atingem determinados status social que lhes dá alguma visibilidade perante a sociedade são cooptados pelos partidos e aliciados para a vida política, passando a girar em torno de um grupo onde se divide o bolo nacional, ou seja, entrando no sistema. Nesse novo estatuto esquecem que são homens e mulheres de cultura, deixam de esgrimir argumentos, trocarem opiniões e passam aos insultos mais vis e mais torpes para atingirem os seus fins: que a sua força política seja a mais votada, chegue ao poder e aí tenham as propendas e as benesses a que têm direito, a paga por esquecerem que são gente de cultura e passarem a ser políticos, no acesso semântico que ao longo das últimas décadas a palavra político começou a ser conotada na gíria popular.
Essas pessoas continuam a escrever, pintar, actuar, mantendo todo o mérito enquanto artistas, pintores, escultores, escritores, mas a perder em qualidades humanas, ferem a sua honestidade e o seu bom nome, extinguindo-se os atributos que granjearam junto da opinião pública.
Quem perde? Quem perde é a cultura portuguesa, tão deficitária de grandes referências, apesar de, felizmente, ainda termos alguns nomes, que preferem viver modestamente, mantendo o seu nome e carácter impoluto e sem mácula, contribuindo com as suas opiniões livres de homens e mulheres livres, pois não devem nada a ninguém.
Alfredo Vieira

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Insegurança – até onde podemos ir

Alfredo Vieira

Muito se tem escrito e falado na comunicação social sobre a insegurança que nestes últimos dias tem assolado o país de norte a sul. Não importa muito a estes comentadores e fazedores de opinião se esses crimes são contra o património, contra bens ou contra pessoas, o importante é defender a sua corrente de opinião – contra ou a favor da política do governo.
Eis que de repente se faz luz no Diário de Notícias de 27 de Agosto de 2008 num artigo de Baptista-Basto onde, sinteticamente, o jornalista e escritor coloca o dedo na ferida. De facto, o importante é ir ao fundo da questão, saber quais as causas sociais que uma sociedade como a nossa pode gerar. Existem divisões, e elas são evidentes e gritantes, e a culpa não é deste e daquele governo, é de todos os governos que promovem e promoveram o culto do individual, do safe-se quem puder, sendo mesmo os órgãos de poder que fomentam essa discrepância. Atentemos, por exemplo, a forma como são admitidos gestores públicos que entram para as direcções das empresas ligadas ao estado, com anos de antiguidade e depois saem delas com chorudas reformas, carros de topo de gama e regalias que são cerceadas ao comum dos cidadãos.
Não vale a pena rodear-se a questão e pedir demissão de governos ou de ministros. Há que mudar a maneira de actuação e de gestão do país. Criar alternativas credíveis a estes políticos. Será que este sistema político democrático falhou? Possivelmente não. O interesse talvez resida nas tentativas de quem está no poder, aproveitando este clima de insegurança, de criar políticas autoritárias para manobrar quem tem as armas, como forma de se sentirem defendidos quando a turba perceber de que nata é feita estes políticos. Até porque eles estão atentos ao que se está a passar no mundo. Existe neste momento em muitos países um espírito de mudança – não se sabe ainda com que consequências –, com experiências como a da Venezuela, ou de outros países da América Central e do Sul, na Europa ainda procuram preservar-se desses ‘malefícios’. Mesmo nos Estados Unidos nota-se esse espírito de mudança. Há poucos anos era impensável no país mais racista e sexista encoberto do mundo, um negro ou uma mulher candidatar-se à presidência desta nação tão importante na economia e na estratégia mundial. Neste momento existe a forte possibilidade de ser um afroamericano o próximo ocupante da Casa Branca.
De facto temos de estar atentos à criminalidade crescente, mas devemos meditar mais sobre os factores que levam a essa criminalidade e não nos deixarmos tentar por hipóteses totalitárias e de criação de estados policiais, que acabam sempre por degenerar em mais violência. Se assim fosse os Estados Unidos eram o país mais seguro do planeta, são um estado onde o crime pode ser pago com a vida, pois a sua sentença máxima é a pena de morte.
Existem no referido artigo de Baptista-Bastos três notas que são de extrema importância para uma reflexão efectiva: «Os laços sociais foram destruídos e o homem "moderno" encerra-se em si próprio, indiferente não só ao "outro" como relapso aos assuntos públicos.»; «Vivemos num país, numa sociedade, que ignora o conceito de comunidade e de partilha para se converter numa massa esvaziada de substância.»; «O português não é mobilizado porque é constantemente desprezado.»
Resta saber quando nos vamos lembrar que para além desta criminalidade existe outra escondida nos lares, nos doces lares, onde perto de quarenta mulheres já foram mortas. Em silêncio sofreram e em silêncio morreram. Até porque entre marido e mulher nunca metas a colher.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Ruínas do Aqueduto da Quinta do Convento dos Frades

Alfredo Vieira
A Quinta do Convento dos Frades situa-se na freguesia de Vialonga a cerca de quinhentos metros do Lugar da Verdelha do Ruivo, encaixada no talvegue do ribeiro da Alfarrobeira. Fundada em 1546 por D. Pedro de Alcáçova Carneiro, foi originalmente um convento de frades franciscanos. Ao longo dos séculos, nomeadamente entre os séculos XVII e XX, sofreu construções e modificações das quais restam alguns vestígios, dado que sofreu uma nova reconstrução, em 1961, que o salvou da ruína.
Estes lugares dos arrabaldes de Lisboa eram bastante procurados pelo sossego e pela qualidade das suas águas que brotavam da serra. Essas águas eram canalizadas através de aquedutos, que chegavam depois às quintas, hortas e conventos. Com o Terramoto de 1755 muita da nobreza escolhe esta zona, nomeadamente a margem norte do Trancão, para construir os seus palacetes e mansões, daí existir muitas casas brasonadas nas freguesias dos Tojais e de Vialonga, algumas delas em completa ruína devido ao seu abandono e à incúria das autoridades competentes, como é o caso do Hospital da Flamenga, onde sobressai uma capela setecentista com um conjunto de azulejaria barroca, até há pouco tempo preservado, mas o tempo vai-se encarregar de a destruir devido ao desprezo a que está votada.
Este quadro de Monteiro representa o que resta do aqueduto da Quinta do Convento dos Frades. É uma bela pintura de cariz figurativo, ou impressionista, para ser mais técnico, e que pode ser a última recordação de um lugar e de um tempo.
São pintores figurativos como Monteiro que nos deixam as derradeiras imagens de locais que deveriam ficar na história. O tempo, a fome desenfreada do progresso e a construção desregrada acabam por perder na memória dos tempos lugares de paz, meditação e cultura, como foram os conventos e mosteiros de lugares que na sua época eram recônditos, servindo de recolhimento aos monges e freiras, que buscavam o retiro para a sua completa entrega a Deus.
Esta obra, para além do carácter histórico, demonstra a decrepitude de um lugar, apesar de preservado. Parece contraditório, mas é desta forma que o pintor o olha e transmite para a tela. A observação atenta da pintura reflecte o que parece um monumento megalítico num espaço perdido, apesar de se notar na perfeição a construção em pedra, já que o artista é minucioso e procura dar todos os pormenores do lugar, dando vida à tela, apesar de estarmos perante duas vertentes interessantes: uma natureza morta, as ruínas do aqueduto, e toda a vida que fervilha à sua volta através da natureza.
Monteiro é um pintor que começa a aparecer cada vez com mais frequência nos escaparates das exposições. Falta-lhe muito pouco para atingir o que se pode chamar de estrelato no seu campo pictórico. Talvez a sua grande capacidade de produção lhe retire tempo para procurar galerias de expressão superior àquelas onde até agora tem exposto. A sua colecção dos Barcos do Tejo e a que se segue, a dos comboios antigos da CP, deveriam projectá-lo para o lugar que tem de ocupar na cultura portuguesa ao lado dos grandes mestres da pintura portuguesa.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

A tirania da arte musical

Alfredo Vieira

A Malaposta abriu a sua temporada de 2006 com um recital de piano, onde estiveram presentes dois grandes mestres da música portuguesa, Olga Prats e António Vitorino d’Almeida, num diálogo musical único, um espectáculo que dificilmente se pode esquecer. Se a qualidade de executante de Olga Prats sobressaiu, a capacidade de improviso do Maestro Vitorino d’Almeida foi notável.
É bem possível que as nossas palavras nada tragam de novo ao fascínio que a música adquire com estes dois nomes maiores da cultura portuguesa. Quem pôde assistir ao recital teve oportunidade de receber uma aula de música, com o conhecimento de muitos dos seus nomes maiores internacionais, ao mesmo tempo que se recordou grandes compositores portugueses, como Lopes Graça, musicólogo falecido em 1995 comemorando-se este ano o centenário do seu nascimento.
Olga Prats deliciou o público com as suas marzucas, valsas, tangos e pequenos trechos musicais, ao mesmo tempo que explicava a todos os presentes o que as notas reflectiam, o sentido e o sentir dos compassos, comentando e falando sobre os nomes tocados e sobre a sua música. Enquanto António Vitorino d’Almeida explicava com o improviso e desdobrava o seu sentir, em notas que faziam vibrar o público que enchia por completo o auditório da Malaposta.
É desta improvisação do Maestro que gostaríamos de falar um pouco.
Enquanto os homens das letras procuram nas palavras a sua textura, as suas camadas, para compreender o seu significado e descodificar de forma a explicar aos amantes da literatura o que se subentende do texto que o autor expôs, aquilo a que se chama ler nas entrelinhas. Daí nasce o ensaio literário, o estudo da literatura e da sua história. Vitrorino d’Almeida faz o mesmo com a música, desdobra com notas musicais aquilo que o recital o faz sentir, ou seja, consegue transmitir através da música as variantes que se podem concluir de uma peça, seja ela qual for. O Maestro transforma as notas de outros compositores na sua própria música, cria-se, dessa forma, um ensaio musical, audível, que prende o auditório ao seu enorme talento, não só de músico, mas de comunicador e de grande conhecedor do fenómeno musical, fazendo-nos entender, de forma fácil, um mundo do qual, muitas vezes, vivemos afastados.
É, de facto, com espectáculos como o recital de piano que nos faz gostar ainda mais da música de câmara, assim como ela é entendida. Foi uma lição extraordinária a que se assistiu e, agora, compreendemos melhor o porque de dificilmente encontrarmos músicos com a capacidade de Olga Prats e António Vitorino d’Almeida, que para além de executantes, são grandes mestres do conhecimento musical e grandes comunicadores.
De facto, este espectáculo fez-nos sentir saudades de programas televisivos como os que eram protagonizados pelo Maestro, assim como de outros, e recordo comunicadores como Vitorino Nemésio, David Mourão Ferreira, João Villaret, Mário Viegas, ou António Lopes Ribeiro, programas que aproximavam o grande público da cultura, da bela tirania da cultura, que nos absorvia e mantinha níveis de audiências acima da média.
Este recital de piano foi o início de uma temporada idealizada pela OdivelCultur para este ano, que promete muita qualidade pelo programa apresentado, no entanto, como lembraram Vitorino d’Almeida e Olga Prats, nota-se uma falha, o esquecimento das comemorações dos cem anos do nascimento de Fernando Lopes Graça, um dos grandes expoentes da música portuguesa do século XX.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

A arte e o dinheiro

Alfredo Vieira
Um dia fui trabalhar para uma fábrica, um dos aliciantes deste meu novo emprego era que, para além do vencimento, tínhamos prémios de produção. No primeiro dia o chefe de departamento que me apresentou aos meus novos companheiros de laboração lembrou-me novamente a produção por objectivos, dizia ele que era bom deslembrar-me, «se você vem com a ideia de ganhar prémios esqueça, nunca vai atingir a produção. Deixe o trabalho correr a um ritmo natural e depois fale comigo.» Assim foi, desprezei os prémios e passado pouco tempo abrangia os níveis mais elevados de produção que a máquina podia atingir.
Falo disto porque desde que me dediquei ao jornalismo encontro algumas pessoas que procuram através da arte (pintura ou escultura, prosa ou poesia, cinema) juntar algum dinheiro para compor as suas finanças. É óbvio que salvo raras excepções essas pessoas acabam por desistir e abandonam, desiludidas, as suas actividades. Muitas nem procuram conhecer outros autores das vertentes artísticas onde se aplicam. Depois, numa perspectiva económica, procuram outras vertentes com o horizonte fito em juntar algum pecúlio aos seus vencimentos.
É axiomático que não podemos condenar alguém que procura melhorar o seu nível de vida, como o fiz quando fui para a fábrica, mas arte é algo que se embrenha em nós. As pessoas procuram a arte, ela apaixona-nos e ficamos submetidos à sua doce tirania. A partir desse dia vamo-nos descobrindo e descobrindo os outros. Só existe algo que nos embebe como a arte: a religião. E ambas podem coexistir, porque as duas são uma busca constante para quem as leva devidamente a sério.
A vida é feita de sentimentos e utopias, itens que estão na arte e também na religião (pelo menos no seu objectivo final: atingir o céu sem pecados). Nunca se pode olhar para elas como uma fonte de rendimento, porque um dia mais tarde vamos desistir e descobriremos a desilusão do ser e do estar no mundo.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Brito Camacho e o anticlericalismo

Alfredo Vieira

Figura controversa Brito Camacho não consegue reunir consenso em torno de algumas das traves mestras do seu pensamento, quase todo ele publicado em livros ou em artigos de opinião nos jornais por onde passou e alguns que liderou.
Republicano e Livre Pensador, foi-o de certo, contudo existe a dúvida enquanto moralista e, até, enquanto ateu que se assumia, pois frequentemente visitava a Capela da Senhora do Castelo, na sua terra natal Aljustrel. A Senhora do Castelo era sua madrinha de baptismo a quem ele dizia visitar como dívida de gratidão que se deve aos padrinhos de baptismo.
É sobre a vida e obra de Brito Camacho que se debruça a recente obra de Luís Vaz O Pensamento Anticlerical de Brito Camacho, editado pela Hugin e prefaciado por António Arnaut, Grão-Mestre do Grande Oriente Lusitano, a Maçonaria Portuguesa. O livro traça o percurso sobre o pensamento de um homem, sobretudo anticlerical, desde o seu tempo de estudante, onde fundou o perfil que o ia reger para o resto da sua vida. Formou-se em medicina, prática que viria a abandonar pouco tempo depois da sua formatura académica, foi ministro no 1.º Governo Provisório, depois da implantação da República em 1910, fundou o Partido Unionista do qual veio a ser dirigente máximo, colaborou em vários órgãos de comunicação social e criou outros de inspiração republicana e de livre pensamento.
Brito Camacho viveu os períodos conturbados da História Portuguesa de antes e depois da implantação da República, entrando ainda pelo período de fixação enquanto governo autoritário do Estado Novo, assim como recebeu, juntamente com outros homens que pugnavam pelo Livre Pensamento, os ataques exacerbados do Clero contra essa forma de pensamento, acirrando ainda mais a sua opinião contra a igreja católica. No seu prefácio António Arnaut coloca a questão do anticlericalismo de Brito Camacho como uma forma de «libertar a política da influência da Igreja e restabelecer a soberania do povo, o poder civil».
Outra das suas grandes lutas foi contra a forma de ensino que se praticava à época em Portugal e o facto das universidades se manterem fieis à monarquia, mesmo depois da instituição da República, considerando os republicanos no poder responsáveis pela continuada influência da igreja no ensino depois de 1910. Pugnou por educação popular e apoiou os Grémios de Instrução e os Centros Escolares Republicanos pois considerava «…que aos letrados não convém que se difunda e intensifique a instrução, assim como aos ricos não convém que haja uma repartição mais equitativa das fortunas. Se o nível intelectual subisse, o valor de muita gente baixava, porque se tornaria manifesta a sua incompetência para ascenderam as posições que ocupam. A ignorância, mais que a preguiça, é a mãe de todos os vícios, porque, embora não tire ao homem o lugar que ocupa na escala zoológica, reduz a pouco mais de nada a sua categoria social, o seu valor como cidadão». (Camacho, Brito, Matéria Vaga, pág. 6).
Contudo a obra agora apresentada, para além de nos dar a conhecer o pensamento e a vida de Brito Camacho, permite conhecer melhor uma época, apresentando factos relevantes sobre a política, o jornalismo, a igreja, durante quase sete décadas, tempo que o estudado viveu. Para Luís Vaz «chegou a altura de submeter Brito Camacho ao tribunal da crítica. Aqui fica o nosso contributo, especialmente no que concerne ao seu pensamento e à sua obra no domínio de uma ideia e de uma prática anticlerical.».
Um livro importante para quem procura compreender um homem que, ao afirmar que não tinha filhos, dizia que era para si que escrevia, «esforçando-me para que eles (os seus escritos) reflictam o mais exactamente possível o meu particular modo de pensar e de sentir, a minhas ideias e os meus sentimentos, sempre norteado por um ideal de justiça, de verdade e de beleza».

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Esconder a cabeça na areia… para enganar os outros

Alfredo Vieira
Após a comunicação ao país do Senhor Presidente da República várias foram as opiniões dos comentadores políticos da nossa praça. A maioria dos fazedores de opinião apareceu nos canais televisivos de semblante carregado a mostrar como se sentiam defraudados pelo facto do Presidente só ter falado do estatuto da Região Autónoma dos Açores. Esperavam mais: situação económica, degradação das instituições, autismo dos governantes em relação aos graves problemas que são transversais a toda a sociedade…, enfim, nestes três importantes itens sintetiza-se todas as dificuldades do nosso povo, que levava à destituição do Governo.
A comunicação do Presidente foi de extrema importância. Portugal Continental e Ilhas são um todo nacional, é bom que os dirigentes se lembrem disso mesmo em tempo de eleições – podem brincar com os nossos impostos, podem enganar-nos nas obras públicas, podem mentir sobre tudo, mas não coloquem em causa a nossa soberania. Este foi, de facto, um sinal do Professor Cavaco Silva que deve ser entendido como os cargos políticos devem ser exercidos e os presidentes não podem, nem devem, ser meras figuras decorativas no nosso sistema político.
Mas a terreiro veio um conjunto de pessoas (os tais comentadores), quase todos eles conotados com os partidos políticos representados na Assembleia da República, sobretudo ligados aos dois maiores partidos. Uns que sim, outros que não, outros que pensavam já na demissão do Governo.
Recentemente, mais concretamente no dia 6 de Agosto de 2008, no DN, Vasco Graça Moura lembrou-se de escrever sobre a intervenção do Presidente da República e não deixou de dar umas «bicadas» na política seguida pelo governo. E não deixa de ter razão, só existe um senão.
Diz no meio do seu artigo de opinião intitulado Pode ser que não tarde: «O Governo que temos não presta para nada. Mostra-o todos os dias, nos mais variados quadrantes e sob as mais variadas perspectivas. Tem falhado em tudo o que anuncia, estropiado tudo o que prevê, desgovernado quase sempre, escamoteado ou manipulado aspectos essenciais, vivido de sessões contínuas de propaganda verbosa numa chocante impunidade.» Tudo isto é verdade, como é verdade o parágrafo com finaliza o texto: «Afinal, até os adeptos e simpatizantes do PS estavam à espera de que o PR se resolvesse a enxotar esta gente do poleiro. Havia outras coisas e ainda não foi desta. Mas pode ser que não tarde.»
Devo dizer que sou um leitor e admirador do poeta, tradutor e ficcionista Vasco Graça Moura, mas quando toca a política desagrada-me. Vasco Graça Moura é destacado militante do PSD, ocupando o cardo de deputado no Parlamento Europeu pelo mesmo partido, estrutura política essa que tem dividido o poder com o Partido Socialista desde as primeiras eleições livres. Tudo o que se passa, toda essa crise permanente em que vivemos não é exclusivo do Eng. Sócrates, é da responsabilidade de todos os primeiros-ministros, de todos os ministros que têm passado pelos vários governos constitucionais, que não souberam revelar-se como verdadeiros políticos capazes de resolver os problemas estruturais do país, pelo contrário, só os vêm agravando.
Gostava de perguntar ao Professor Vasco Graça Moura, homem de letras e de cultura reconhecida, se está a esconder a cabeça na areia ou quer enganar os outros? Se o PSD estivesse no governo, com a sua actual líder, iria tomar medidas políticas diferentes? A Dr.ª Manuela Ferreira Leite já deu a entender que não.Por isso será que vale a pena mudar de governo só por mudar. Se é para isso penso que não. A este já temos antipatia de estimação.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

A directiva da vergonha

Foi aprovado na passada quarta-feira, dia 18 de Junho, no Parlamento Europeu a chamada “Directiva do Retorno”, uma norma comunitária que harmoniza ao nível dos 27 estados membros da União Europeia (UE) a política de repatriamento de emigrantes ilegais no espaço europeu, que prevê a possibilidade de retenção por um prazo até 18 meses e interdição de regresso até cinco anos.
Para um continente que sempre se pautou por uma enorme tolerância e liberdade esta pode ser considerada a “Directiva da Vergonha”. Mais ainda se pensarmos que a Europa foi um continente de imigrantes, sobretudo para a América Latina e África. Hoje nesses países, e a aplicar-se a directiva, seríamos imigrantes ilegais, já que sempre saímos de forma precária dos nossos países.
A Europa tornou-se num espaço apetecível para um conjunto de povos que procuram neste espaço as mais diversas ocupações, muitas vezes empregos que já não são apetecíveis, ou não se coadunam com a formação dos europeus. São pessoas que, na sua maioria, vêm para trabalhar, para produzir riqueza, para pagar os seus impostos. No fundo vêm engrandecer o velho continente, que sempre se mostrou ímpar em matéria de direitos humanos e que lutou para que em todo o mundo os homens pudessem ser mais iguais. Agora inverte-se a situação e começa a restringir e a criminalizar o que chama de imigração ilegal, num claro atropelo aos mais elementares direitos dos povos, sobretudo de pessoas que vivem no mais baixo limiar da pobreza e da sobrevivência, que nada mais faz, desde que se levantam até que se deitam, do que pensar na forma de se alimentar e de alimentar os seus filhos.
É necessário criar regras, por isso é necessário legislar, no entanto, pergunto-me: porque há-de ser no sentido repressivo e restritivo? Isto é um retrocesso civilizacional, que não cria condições para a integração de cidadãos não comunitários. Uma pessoa é presa só porque não tem documentos. Nada é tido em conta, nem os laços familiares que o possam ligar a cidadãos daquele país. Será que as pessoas por não terem documentos não têm direitos? – como questionou a presidente da Amnistia Internacional. No caso dos menores ainda é mais flagrante, chocante e imoral: prevê-se a possibilidade de detenção, mas damos-lhe a possibilidade de brincarem à vontade, segundo as brincadeiras próprias para a idade.
Está-se a desvirtuar o fundamento democrático e humanista, pedras basilares da construção europeia.
Este tem sido um assunto que não tem merecido grande destaque na comunicação social, apesar de inúmeras organizações não governamentais (ONG’s) terem levantado a sua voz, entre elas a Amnistia Internacional, mas a quem se dirige estas medidas repressivas são aqueles que não têm voz, aqueles que não chegam aos grandes médias, mas que são tão humanos, como qualquer legislador que fez esta directiva.Perante este cenário, que se levanta devido à chegada ao poder de maiorias da direita radical com tendências xenófobas, como é o caso de Itália e de França, chefes de estado e de governo de países da América Latina já mostraram a sua discordância. A essas vozes juntam-se a de intelectuais e cientistas. No entanto, todos se fazem surdos na União Europeia. E desse grupo de surdos faz parte a direita portuguesa que votou junto dos seus aliados do Partido Popular Europeu, assim como o governo, que ainda não se mostrou desfavorável à aplicação desta directiva em território nacional, e que os 27 estados membros vão começar a aplicar em 2010.

domingo, 3 de agosto de 2008

A conciliação da família

Alfredo Vieira

Um dos temas que mais aparece na comunicação social, no debates e nas conversas tem sido a família. Por razões de sobrendividamento, ou falência, de desagregação, de desestruturação…, enfim, um conjunto de factores económicos e sociais que colocam em risco a mais antiga forma de organização sócio-económica e religiosa conhecida.
Desde início da década de sessenta do século passado em Portugal as mulheres iniciaram um processo de emancipação devido a vários factores: por vontade própria – uma forma de se tornarem independentes do poder dos homens; por necessidade de apoiar economicamente a família; início da guerra colonial – com a consequente diminuição de homens no mercado de trabalho, entre outros factores. Rompia-se com uma das máximas de Salazar: Deus, Pátria e Família, que tornava a mulher no centro de agregação da família e o homem como angariador de dinheiro para o sustento dos mesmos, ou seja, a mulher era para estar em casa a tomar conta dos filhos, numa prol que se queria farta.
No entanto, o universo das mulheres continua a ser pensado por homens, que não criaram a conciliação entre o trabalho e a família de molde a permitir, primeiro a integração do homem em pleno no lar, e segundo da mulher no emprego. Outro factor preponderante é a mudança brusca da organização do tecido económico português, com o desaparecimento da agricultura de moldes familiares, ou de subsistência, e com o aumento descabido do sector terciário em detrimento do sector primário e secundário, ou seja, da indústria e da agricultura. Com este aumento do sector do comércio e serviços, no nosso país, criou-se um sistema de horários flexíveis que leva, na prática, a trabalhadores e empresários ultrapassarem em muito os horários de trabalho estipulados pela lei. Depois os movimentos pendulares aumentaram com a saída das pessoas para subúrbios, lugares cada vez mais longe dos empregos, com o consequente aumento de tempo de viagem nesses movimentos pendulares. Ou seja, em concreto, a empresa sobrepôs-se à família com custos irreversíveis para os padrões sociais. Tudo isto não é um progresso civilizacional, mas um retrocesso com consequências graves para a sociedade, sobretudo para as crianças, que crescem sem referências familiares.
Talvez por isso se reveste de especial importância algumas conclusões da primeira Convenção Nacional da Família, organizada em Braga pela Universidade do Minho, onde Nuria Chinchila aponta algumas questões de enorme importância para as famílias, entre elas a necessidade de se repensar o universo e as políticas das empresas, nomeadamente em termos de flexibilização de horários, entre outros factores. É necessário que as empresas sejam feitas à medida do homem e da mulher. A directora do International Center of Work and Family diz que o trabalho é um meio para a família e não o contrário, observando ainda que a mulher entrou a cem por cento no mundo do trabalho, mas o homem não entrou a cem por cento na família.
Vai sendo tempo de observar políticas sociais e educativas que permitam à mulher assumir de pleno direito o papel que lhe cabe na sociedade, assim como os homens assumirem a responsabilidade de complementar, apoiar e ajudar a que essas políticas sejam devidamente aplicadas.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

NOSSA SENHORA DA NAZARÉ E O CONCELHO DE VILA FRANCA

Alhandra recebe dos primeiros círios
Alfredo Vieira
A descoberta de um livro sobre Nossa Senhora da Nazaré, organizada por Pedro Penteado, baseada na obra homónima do Padre Manuel de Brito Alão, com o título Antiguidade da Sagrada Imagem de Nossa Senhora da Nazaré, editado pela Colibri, em parceria com Confraria de Nossa Senhora da Nazaré, deve-se à curiosidade que me despertou o círio e a devoção que as populações da maioria das freguesias do concelho de Mafra dedicam à imagem que, segundo a lenda, foi descoberta por Dom Fuas Roupinho, depois salvo «por obra da Divina Providência» de uma morte certa no promontório do Sítio, na Nazaré, numa das mais belas histórias do imaginário português.
Nesta obra encontrei referências a uma primeira fase do círio dedicado a Nossa Senhora da Nazaré que o ligam à população de Alhandra, quando as populações ainda se deslocavam ao Sítio em peregrinação. Mais tarde, e desperto pela curiosidade, acabo por encontrar outras referências à sua passagem pelo concelho de Vila Franca de Xira, nas invasões francesas, na obra Dom Fuas Roupinho e o Santuário da Nazaré, do Padre Mendes Boga.
Convém introduzir um pouco de como se iniciou este culto, que, segundo reza a lenda, tem perto de 1700 anos (lenda que acabou por inspirar poetas, prosadores e dramaturgos). Reportamo-nos ao ano de 361, no Império Romano, quando este vivia grandes convulsões sociais, sobretudo com a sangrenta perseguição que o Imperador Juliano movia aos cristãos, que tentavam passar a sua mensagem em Espanha, onde se refugiavam. Ciríaco, um monge grego, leva consigo a pequena imagem da Santa para a Palestina, que, segundo a tradição, foi esculpida por S. José, marido de Maria, Mãe de Jesus. Ciríaco acabou por confiar a imagem a S. Agostinho, bispo de Hipona, que faleceu em 430. A imagem acabou por chegar à Europa no século V, sendo venerada no mosteiro Cauliniano, onde permaneceu durante três séculos.
A monarquia visigótica vê-se destronada pela invasão das hostes islâmicas. Com medo das represálias o curador, D. Rodrigo, abandona o mosteiro e leva consigo a imagem de Nossa Senhora da Nazaré. Em Mérida entrega-a D. Rodrigo, que, vendo-se assediado pelos seguidores de Maomé, acaba por fugir e se isolar no Sítio, onde colocou a imagem numa galeria que cavou nas escarpas, para servir de abrigo. Neste local viveu escondida durante 469 anos.
O alcaide D. Fuas Roupinho, lugar tenente de D. Afonso Henriques, partiu de Porto de Mós para uma caçada. Nos bosques sobranceiros à Nazaré passa uma corça, Dom Fuas persegue-a até ao lugar onde se dá o milagre, o promontório do Sítio, que se encontrava envolto em neblina. Quando estava prestes a atingir o animal pressente o perigo, ao sentir-se no extremo de uma rocha que distava do mar mais de cem metros. O cavalo estancou e D. Fuas regressa para junto dos companheiros. Voltando ao lugar com os amigos encontra a gruta onde se abrigava a imagem.
Depois deste milagre seguem-se outros. É a partir deste encanto que se propaga pelo reino as maravilhas das obras milagreiras de Nossa Senhora da Nazaré, levando ao seu culto. Envolto nesta adoração cria-se um dos maiores templo marianos no Sítio da Nazaré.
Brito Alão, que segundo as crónicas da época viveu mais de oitenta anos, nasceu em 1570. Desde muito novo dedica-se ao culto e ao estudo da história de Nossa Senhora da Nazaré, com a conclusão de algumas obras. É baseado nestes estudos que nasce em 1628 a obra que nos referência, pela primeira e única vez, a ligação de Alhandra ao este culto mariano, em a Antiguidade da Sagrada Imagem de Nossa Senhora da Nazaré.
A obra aparece como uma visita guiada de três personagens pelo templo e pela adoração, o autor, o seu irmão, capitão Cristóvão Brito Alão, e um dos seus antigos amigos da Casa do Arcebispo de Braga. É durante esta narrativa, no capítulo XXXV, que se fala das Confrarias das Vilas de Porto de Mós, de Alcobaça e D’Alhandra.
Depois de apresentar os dois primeiros círios, que estavam presentes na data da narração no templo, perante os seus amigos, o Padre Alão fala um pouco do círio de Alhandra: «Este sírio pequeno é da Confraria da vila D’Alhandra, que são daqui treze léguas; vem o terceiro Domingo de Outubro, é a mais moderna, trás armação para toda a igreja, com missa cantada e pregação.» É este pequeno trecho da obra que liga a vila alhandrense à devoção de Nossa Senhora da Nazaré. Muito antes dos círios da Região Oeste (freguesias dos concelhos de Sintra, Mafra e Torres Vedras), Alhandra prestava culto à imagem de Nossa Senhora da Nazaré.
Mais tarde, em referência à saga das invasões francesas, o Padre Mendes Boga alude ao roubo e estropiação de obras de arte que durante séculos foram guardadas na igreja de Nossa Senhora da Nazaré, no Sítio, e à fuga do mordomo da Casa da Nazaré, António Carvalho, com a imagem para o lugar de Pendão, Belas, em casa de um criado de D. João VI, onde esteve até Março de 1811, de onde foi conduzida até Queluz, sendo mais tarde deslocada para a Igreja de Benfica. Quando os franceses são banidos do país, a imagem é levada para a Nazaré, onde o povo a esperava. Nesta sua deslocação passa por Vila Franca de Xira, entrado no seu santuário a 6 de Setembro de 1812.
Depois de uma vasta pesquisa pelos lugares de culto, actuais e outros já desaparecidos, não se encontrou nada que se refira ao culto de Nossa Senhora da Nazaré no concelho, muito menos em Alhandra, onde existem algumas capelas, ermidas e igrejas. Contudo, estas referências permitiram-me pensar que algo pudesse ligar as duas freguesias ribatejanas à devoção nazarena, mas nada as liga a uma das adorações mais antigas do país, um dos círios mais importantes, que congrega dezassete freguesias, e uma das mais belas lendas portuguesas.

Fontes:
Antiguidade da Sagrada Imagem de Nossa Senhora da Nazaré, de Manuel Brito Alão, edição de Manuel Penteado, Edições Colibri / Confraria de Nossa Senhora da Nazaré
D. Fuas Roupinho e o Santuário da Nazaré, Padre Mandes Boga, Porto-1973