sábado, 7 de novembro de 2009

SARAMAGO E O LIVRO DE CAIM

Caim é um hino à liberdades dos homens
Alfredo Vieira

Na antiguidade vários livros se destacaram e que nos dias de hoje são de vital importância para a humanidade. Sobre essas obras vários autores clássicos e contemporâneos se debruçaram e continuam a debruçar. Destacam-se as obras atribuídas a Homero, a tragédia grega, a Eneida de Virgílio e, consequentemente, a Bíblia (conjunto de livros que marcam toda a civilização ocidental há cerca de dois mil anos). É sobre a Bíblia, mais concretamente sobre o Velho Testamento, em Génesis, que José Saramago se baseou para escrever o seu último livro Caim.
Se partirmos do princípio que a Bíblia é um livro sagrado, intocável, veremos com outros olhos a mensagem transmitida. Contudo, em minha opinião, a Bíblia deve ser olhada de outra forma. Estamos perante a história de um povo, o povo de Israel, e as leis porque esse povo se devem reger. Não é por acaso que a Tora, livro sagrado judaico, é praticamente todo o Velho Testamento da Bíblia Cristã. Aí está escrita a sua história e as suas leis, a sua forma de vida. Muito dessas escrituras, nomeadamente no capítulo das leis, são esquecidas pelos católicos. Assistimos ao nascimento do povo hebraico e ao seu desenvolvimento até criarem a sua nação. É óbvio que estas gentes, com o seu crescimento em número, tiveram de se organizar, para isso criaram leis. E qual a melhor forma de as fazer cumprir numa época conturbada da história, onde os homens se digladiavam pelos melhores pedaços de terras, do que lhes dar origem divina. Qual a melhor forma de guiar centenas de milhares de pessoas na fuga do Egipto, gentes com cultos e culturas adulteradas pela cultura dominante, a egípcia, senão dar-lhes um guia espiritual, um deus a quem todos teriam de obedecer, sob pena de receberem castigos celestes implacáveis. É mais fácil obedecer ao desconhecido, ao transcendente, do que aos nossos semelhantes, mesmo que se saiba que se vai para uma terra prometida. A partir do Génesis e o Êxodo, até Livro de Josué, onde se dá a contagem de todos os membros das doze tribos hebraicas e se chega à terra prometida, relata-se o nascimento, padecimento e libertação dos Hebreus. O que se segue é a consolidação de um país, com direitos e deveres, com leis e castigos, com guerras por novas posses que pudessem alimentar o crescimento da população. É natural que os escribas e os chefes tribais continuassem a afirmar que tudo emanava do direito divino.
Olhando desta forma para a Bíblia não nos choca a abordagem ficcionista de Saramago em Caim, como não chocou o Evangelho Segundo Jesus Cristo, que tanta celeuma e censuras de várias espécies se assistiram na época. O Nobel português tem o condão de provocar choques, ou então provocam-lhes, o que acaba por aguçar a leitura das suas obras. É visível que a obra é provocante e polémica, já que leva Caim a atravessar diametralmente todo o livro de Génesis e a “viver” situações que naturalmente não viveu. Axiomático que estamos perante uma obra de ficção, mas não deixamos de olhar para o livro e ver que existe um ajuste de contas mal resolvidas entre Saramago e a Igreja Católica, talvez até com o Deus evocado no Velho Testamento. Contudo, não podemos continuar a olhar para os crimes cometidos por essa mesma igreja, mesmo que eles tivessem lugar num passado não muito longínquo, senão teríamos de olhar para outros crimes que mataram muito mais pessoas em nome de outras religiões, ideologias ou princípios. Há que recordá-los, estudá-los, conhecê-los e não voltar a permitir que eles voltem a acontecer. Daí que este género literário seja importante para não se esquecer a História.
O que Saramago nos diz nesta obra pouco traz de novo à discussão, são factos conhecidos de quem leu a Bíblia. Todos sabemos que Caim matou Abel por ciúmes, que havia outros homens na terra para além de Adão e Eva (Tirando o facto de serem filhos do senhor, obra directamente saída das suas divinas mãos, pág. 33), conhecemos a metáfora da Torre de Babel, assim como a de Sodoma e Gomorra, o sacrifício do filho de Abraão, as guerras por novas possessões e a história da Arca de Noé. Agora que o autor faz nesta obra é magistral, utiliza todos esses e outros factos bíblicos para colocar Caim nesses episódios, dando-lhe um cunho próprio, algumas vezes alterando o rumo dos acontecimentos, se bem que os resultados são sempre os mesmos, mas a História não se altera. Esta é a forma que Caim tem de se vingar de Deus, primeiro por não o castigar pela morte de seu irmão e depois por o ter colocado como judeu errante por terras de ninguém. Caim mata Abel porque não pode matar Deus, esta é a resposta no romance para os ciúmes de Caim, assim como esta personagem bíblica considera o Senhor como a fonte de todos os males. Reportando a uma conversa com os anjos sobre os padecimentos de Job Caim diz: «Estou cansado da lengalenga de que os desígnios do senhor são inescrutáveis, respondeu Caim, deus deveria ser transparente e límpido como cristal em lugar desta contínua assombração, deste constante medo, enfim, deus não nos ama.(pág. 142)». Mais adiante sobre Sodoma, e na mesma conversa com os anjos, fala-se de justiça: «… mas a justiça, para deus, é uma palavra vã, agora vai fazer sofrer Job por causa de uma aposta e ninguém lhe pedirá contas. […]. O senhor não ouve, o senhor é surdo, por toda a parte se lhe levantam súplicas, são pobres, infelizes, desgraçados, todos a implorar o remédio que o mundo lhes negou, e o senhor vira-lhes as costas, começou por fazer uma aliança com os hebreus e agora fez um pacto com o diabo, para isto não valia a pena haver deus.(pág. 143)», ou seja, não há na obra um Deus misericordioso, há sim um Deus com caprichos, que age por impulsos, consoante as suas «birras», ocasiões, ou até apostas. Como Job não renegou ao seu Deus, assim os crentes na sua imensa fé, apesar dos sofrimentos, não renegam aos princípios do catolicismo.
Quando Noé e sua família saem da arca diz o Génesis, no seu capítulo 8, Deus pensou que não tornará mais a amaldiçoar a terra por causa do homem, dizendo a Noé para se multiplicarem e encherem a terra. Só que o narrador troca os acontecimentos, antes de a arca ancorar Caim mata todos os ocupantes humanos, a mulher, as filhas e os genros de Noé, acabando este por se suicidar. Assim é o fim da humanidade. O mundo fica habitado unicamente por Caim e Deus, que continuam numa perpétua discussão até ao final dos tempos, tanto que «A história acabou, não haverá mais nada para contar. (pág. 181)».
Caim é uma narrativa extraordinária, um dos livros mais brilhantes do nosso prémio Nobel, pela forma como capta o leitor para a história e queiram os mais radicais ou não muita gente vai conhecer a Bíblia, aí cada um tirará as suas conclusões. Saramago não tem medo do castigo dos infernos, nem da fúria divina, pois segundo Deus há: «…gente que me virou as costas, alguns vão ao ponto de negar a minha existência, Castiga-os, Estão fora da minha lei, fora da minha alçada, não lhes posso tocar, é que a vida de um deus não é tão fácil quanto vocês crêem, um deus não é senhor daquele contínuo quero, posso e mando que se imagina, … (pág. 125)». Afinal Saramago será julgado pelos homens de boa vontade.

Jornal Regional Triângulo, 2009/11/05

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Primeiro livro de Alfredo Vieira

A obra:
Um homem só numa grande metrópole.
Naquele dia Lisboa parecia que estava deserta.
Ao longo da manhã encontrou quatro pessoas, um músico, uma mulher, um empregado de mesa e um rapaz. Imagine-se estas cinco pessoas sós na grande capital. No dia seguinte encontram uma jovem pintora.
Quando tudo parecia perdido eis que a cidade regressa à normalidade, uma normalidade aparente, pois o grupo descobre que está desalinhado. Na espera falam de tudo, grandes divagações teológicas e filosóficas. Até que chega o dia em que descobrem que os primeiros dias do fim.
Uma história de contrastes, utopias, liberdade e de amor.
Será que chegou o fim da História?

O autor:
Alfredo Vieira nasceu em Outubro de 1958 em Lisboa, contudo a sua terra natal é Sacavém. Mais tarde adoptou a Póvoa de Santa Iria como sua segunda terra.
Desde muito cedo que se interessou pelas letras, que o levou a colaborar com diversos jornais nacionais e regionais com colunas literárias. Com um grupo de amigos funda o Jornal Regional Triângulo, no qual foi director-adjunto, criou o suplemento cultural. Mantêm-se actualmente como colaborador na área da cultura.
Prefaciou alguns livros de poesia popular e foi júri de prémios literários.
Diário dos Primeiros Dias do Fim é a primeira obra de ficção.
Título: Diário dos Primeiros Dias do Fim
Autor: Alfredo Vieira
Editora: Fonte da Palavra

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

O mistério das relações humanas

O primeiro romance realista da literatura universal foi escrito em 1719 por Daniel Defoe (1660-1731) e influenciou um conjunto de autores, que, melhor ou pior, têm aproveitado essa experiência para criarem obras, algumas delas de grande valor para a humanidade. O livro em questão é A Vida e as Estranhas e Surpreendentes Aventuras de Robinson Crusoe, um dos textos chaves da Modernidade – normalmente conhecem-se as edições juvenis que agrupa essencialmente a estada na ilha. Depois da saída deste romance, e devido ao seu sucesso, um conjunto de títulos na mesma linha deram origem a uma autêntica robinsonmania, muitos desses títulos são meras imitações. Contudo, autores há que aproveitarem essa espectacular obra para criarem grandes romances, entre essas grandes obras encontrasse O Rei das Moscas de William Golding (1911-1993), editado em 1954, tornando-se um clássico de textos escolares.
O Deus das Moscas é a história de um conjunto de crianças, algumas a entrar na adolescência, que viajam num avião que se despenha numa ilha deserta, ficando esse grupo por sua conta sem o cuidado de qualquer adulto. Ao princípio tudo foi brincadeira e liberdade, por fim degenera em violência extrema.
É através do som da casca de um búzio que o grupo se junta, passando essa casca a ser o símbolo do poder, a quem é passado o búzio têm o poder de falar nas assembleias, sendo o chefe aquele a quem a assembleia entrega a casca. Desde início que se nota uma tensão entre dois adolescentes, um que encontra o búzio e outro que lidera um grupo de crianças de capa e boné, um coro musical, sendo ele o corista do capítulo. Essa tensão manifesta-se na primeira reunião e vai prosseguir durante toda a acção. Primeiro esse grupo de crianças é conhecido por caçadores, são eles que caçam para os restantes, mais tarde vão aparecer como os selvagens, tal é a ferocidade que colocam nas suas acções.
Golding deixa o supérfluo e vai ao essencial: o princípio das relações humanas e os jogos de poder, a luta pela liderança que se começa a travar desde tenra idade, mesmo que para isso haja necessidade de matar. Estes instintos perversos, mas naturais, são essenciais para a sobrevivência do ser humano em ambientes inóspitos, se bem que no caso de O Deus das Moscas, as crianças poderiam organizar-se em torno de objectivos que eram comuns aos dois líderes dos grupos: o caçar e o fogo. Por um lado a necessidade imediata da sobrevivência, por outro o fogo como forma de cozinharem os alimentos e serem vistos por barcos que passassem ocasionalmente pela ilha perdida.
Mesmo saídos de um país civilizado os jovens e as crianças mostraram os seus instintos mais primários impróprios da educação selectiva que levavam. O oficial que acaba por os salvar reconhece que para um grupo de miúdos britânicos deveriam de se organizar melhor.
Esta é uma metáfora excelentemente conseguida por William Golding, fácil de ler e que representa a instabilidade da evolução do homem e da relação entre jogos de poder, o medo e violência.
Golding acabaria por receber o Prémio Nobel da Literatura em 1983.
Alfredo Vieira

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Cultura e ensino em Portugal

O desenvolvimento de um país vê-se pelo grau de escolaridade da sua população.
A discussão sobre o tema da educação prolonga-se desde os primórdios, nomeadamente no berço da civilização moderna nascida na antiga Grécia. Platão e Aristóteles foram os primeiros a dedicar-se ao tema, colocando o ensino das letras a toda a população como mote de uma filosofia que emergia no mundo.
Em Portugal, e vários séculos passados, é o pedagogo Luís António Verney quem propõe uma reforma do ensino, numa obra que publica anonimamente sob o título de Verdadeiro Método de Estudar, na centúria de XVIII. Apesar de não conseguir ver publicados todos os volumes que constituíam a obra programada, dela são conhecidos alguns volumes datados de meados do século que se prolongam até 1769. Esta reforma, revolucionária e polémica, acaba por granjear a Verney algumas inimizades que acabam por o levar ao exílio forçado.
Mais tarde, a Geração de 70 coloca na ordem do dia a questão cultural e apresenta algumas propostas para o desenvolvimento da educação dos portugueses. A implantação da República abre grandes perspectivas aos intelectuais e aos governantes republicanos progressistas da época, contudo as graves crises sociais e políticas que se sucedem umas atrás das outras acabam por secundarizar um dos problemas mais graves da sociedade portuguesa, apesar da abertura de inúmeras escolas republicanas, que ainda hoje existem no país, nomeadamente na cidade de Lisboa.
Os neo-realistas, sobretudo o núcleo vilafranquense, colocam novamente a questão da educação na ordem do dia e através dos sindicatos criam cursos nocturnos de alfabetização, muito devido à tenacidade de Alves Redol e Dias Lourenço, no entanto, o regime fascista acaba por cercear, através de leis repressivas e invasão dos locais de instrução pela PIDE, esse desejo dos intelectuais ribatejanos.
Com a Revolução de Abril novas esperanças se abrem. Criam-se escolas nocturnas, cursos de alfabetização. O próprio Movimento das Forças Armadas apoia esse esforço nacional de levar a escola aos mais recônditos lugares do país. É implementado o serviço cívico, que para além de outras atribuições, desenvolve a alfabetização. Estamos em um dos países mais atrasados da Europa, pois mais de sessenta por cento da população portuguesa é analfabeta na década de setenta, quando nos países desenvolvidos se discutia o aumento da escolaridade obrigatória.
Rapidamente o governo regulariza o ensino para adultos em horário extra-laboral, cria cursos para trabalhadores-estudantes, que ao longo dos anos vai retirando à área curricular matéria, tornando mais fácil aos portugueses adquirirem graus de escolaridade, que, na prática, não se tornou em mais formação profissional e cívica. Cria-se a ilusão aparente da diminuição do analfabetismo, quando, na realidade, quem termina o ensino secundário nocturno tem grandes dificuldades ao ingressar no ensino superior.

Após trinta anos de expectativa, por parte dos intelectuais portugueses, no aumento do nível cultural dos portugueses, o certo, é que aposta dos governos que se sucederam foi na obra visível, ou seja, o país começou a construir-se pelo telhado. Enquanto nos países que, tal como Portugal, acabavam de aderir à então Comunidade Económica Europeia apostavam na educação, no ensino e na cultura, em Portugal apostava-se na construção de auto-estradas (vide o caso da Irlanda).
Parece que começa a existir uma inversão da aposta dos políticos portugueses e a educação acaba por estar mais uma vez na agenda política nacional, com medidas de que muitos ainda duvidam da sua eficácia.
Ainda temos muito a aprender com os países desenvolvidos e com os novos países que acabam de aderir à União Europeia. No entanto, os responsáveis pelas reformas, se é que de reformas se tratam, têm de ouvir quem está no círculo, ou seja, o governo tem de ouvir os professores, profissionais que têm feito milagres, devido às dificuldades que são constantemente colocados no exercício da sua profissão, e com os meios que são colocados à sua disposição. De uma vez por todas tem de se colocar em prática o Luís António Verney que propôs no século XVIII, uma verdadeira reforma do ensino nacional, baseada no ensino do português e dos grandes mestres da cultura portuguesa, pois essa é a base da compreensão de todas as ciências. Sem um verdadeiro desenvolvimento intelectual das nossas crianças e jovens e do conhecimento da sua língua materna não existe verdadeiro desenvolvimento do nosso país.
Alfredo Vieira

terça-feira, 23 de setembro de 2008

NOVAS OPORTUNIDADES PERDIDAS

Recentemente tive algumas experiências com pessoas que obtêm escolaridade através do chamado programa Novas Oportunidades ou através dos cursos de formação profissional do IEFP.
Apesar de achar louvável que se erradique o analfabetismo, se aumente o grau de escolaridade, se dê mais competência e formação profissional, penso que esta não é a melhor solução, mantêm-se a iliteracia e as dificuldades de compreensão da língua materna.
Quer o programa Novas Oportunidades, quer a formação profissional, acaba por criar falsos índices de escolaridade, servem só para as estatísticas da União Europeia.
Como comecei por escrever ia dissertar sobre as experiências que tive com pessoas saídas desses programas, talvez seja essa a melhor forma de elucidar o que quero transmitir.
Uma pessoa apresentou-se a uma entrevista para emprego com um certificado de habilitações onde constava o nono ano de escolaridade e um curso de cozinheira. Quando li o currículo e a ficha de inscrição estes vinham carregados de erros ortográficos, frases mal construídas; numa ficha de leitura sobre uma receita de culinária a pessoa não entendia o que se pedia, nas explicações sobre a confecção do prato baralhou tudo, não sabia por onde começar, diga-se que a receita era complicada de executar, mas para uma pessoa com o nono ano e um curso de cozinheira deveria ser fácil. Convém dizer, para melhor compreensão, que a pessoa em questão tinha quarenta e cinco anos e quando iniciou a formação profissional as suas habilitações literárias eram o quarto ano concluído há cerca de trinta e cinco anos. É óbvio que não vou julgar a pessoa, até porque não tenho esse direito, nem a condenar por o Estado lhe dar um certificado de habilitações que não corresponde à verdade. Como profissional a pessoa era auto-suficiente, devidamente acompanhada por uma cozinheira com experiência na empresa, mostra-se empenhada, com regularidade pontual e uma evolução profissional muito boa, até porque sabe ser esta uma das últimas oportunidades de integrar o mundo do trabalho.
Esta pessoa acabou por me demonstrar o artificialismo que o Estado Português usa para mostrar níveis de escolaridade, ou melhor, de conhecimentos que não existem no país.
Depreende-se por habilitações os índices de estudo, conhecimento e literacia, por isso se chamam habilitações literárias, e não as competências profissionais; para julgar e compensar os trabalhadores existem as carreiras profissionais.
De forma nenhuma sou contra estes cursos de formação profissional, bem pelo contrário, sou contra que eles servirem só para as estatísticas. Para isso dever-se-ia acompanhar essas acções com aulas complementares de português, línguas estrangeiras, acção cívica e uma ou outra disciplina escolar correspondente à área de formação.
Está-se a criar artificialismos que mais tarde poderemos pagar caro. Os estudantes, que têm de passar nove e dez horas nas escolas, onde os pais têm de pagar pelos livros, pelo material escolar, pelos transportes e pelas refeições, acabam por abandonar a escola e esperam por uma dessas acções de formação, até porque auferem subsídios de toda a ordem e o trabalho intelectual não é grande.
Em conclusão: estas iniciativas de formação contínua são de aplaudir, mas devem ser acompanhadas com outras disciplinas que não só as profissionais; a integração neste universo de ensino deve servir para pessoas que estão desempregadas, ou com dificuldades de aprendizagem e integração na escola tradicional. Perante uma avaliação idónea, onde os formandos tenham, de facto, aproveitamento, conheçam pelo menos a língua portuguesa, então sim atribuir-se um certificado de habilitações. Para as pessoas que terminam estes cursos profissionais, nos moldes actuais, entregue-se um diploma que ateste as suas capacidades para exercer a profissão.
Alfredo Vieira

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Mário Máximo o segredo das utopias

Um dia recebi um livro em casa que me animou a atenção pela sua capa, que isto de apresentação das capas é muito importante, as editoras inglesas e americanas são peritas na estética das capas como forma de promoção dos livros, o título pouco me dizia, contudo comecei a lê-lo e de forma automática os espaços livres nas páginas encheram-se de apontamentos e anotações que me ocorriam sobre o que estava a decifrar. Desconhecia completamente o autor, nunca lera nada dele, mas o interesse que me despertou apontou-o logo como um dos melhores poetas contemporâneos que me fora dado a ler.
Trata-se de Oração Pagã. Assim entrei em contacto com a obra de Mário Máximo.
Durante um bom par de anos desconheci por completo o percurso literário de Mário Máximo, que, entretanto, publicara o seu romance A Ilha e um novo livro de poemas: Prima Materia. Um dia na redacção do Triângulo (Jornal Regional) foi-me proposto fazer uma entrevista ao homem que estava ligado ao CESDIS e a outras tertúlias culturais, assim como ao movimento político de Odivelas. Conheci-o pessoalmente no Odivelas Parque e no meio de todo aquele barulho conseguimos conversar. Falámos de utopias, da globalização, não desta globalização que conhecemos, mas da globalização dos povos, falámos de literatura, sobretudo de poesia. Nesse dia 10 de Janeiro de 2004 descobri que tínhamos algo em comum. Ao ler a introdução da Prima Materia fiquei a saber da sua paixão pelas viagens, nomeadamente por Paris, a minha capital de eleição, Santiago de Compostela, lugar místico, numa mistura de fé e paganismo, cidade de retiro e meditação. Podemos não estar de acordo sobre a serra da Lousã, talvez por não conhecer bem a serra, mas com certeza que não a vou trocar pela ilha de São Miguel, o paraíso em pleno Atlântico. Da Grécia e das suas ilhas fica o mitológico e o berço da civilização moderna.
Dai continuou a minha admiração pelo seu trabalho literário, que tenho a vindo a descobrir com agradável surpresa, até pelos momentos de prazer que as suas obras me proporcionam, já que vivo sobre a doce tirania das artes, do belo.
Noto na obra de Mário Máximo a sua paixão por ilhas, quer no seu romance quer agora em Diário de Uma Ilha de Distante. Esta sua paixão advém dos seus sonhos, ou melhor, das suas utopias. Este seu apego às utopias começam com Thomas Moore, da sua ilha e do navegante de origem portuguesa, que encontra o lugar, não direi idílico, mas ideal para viver: a Ilha da Utopia. De seguida leva-nos até A Nova Atlântida de Francis Bacon e recebe-nos no seu encontro com o vale de Xangri-La, em o Horizonte Perdido de James Hilton, esse sim lugar idílico, local mágico de eterna juventude e longa felicidade, que se perde quando se passa para este lado, o verdadeiro mundo, o real, onde já não existem utopias.
Mário Máximo, contudo, continua a acreditar nas utopias, apesar de estas serem inatingíveis para a maioria dos mortais, mas para os poetas essa é uma sua luta constante e heróica, uma luta consigo próprio, desesperante, por isso continua a crer no amor, marca que deixa sempre nas suas obras.
O penúltimo livro de Mário Máximo Hangar de Sonhos – Odes Brancas é uma obra de introspecção, onde os sonhos e as utopias formam o conjunto natural da obra poética. Um livro virando para o interior do poeta onde se faz uma reflexão sobre o seu íntimo, sobre as suas experiências, numa observação e descrição dos seus pensamentos e sentimentos numa forma própria de olhar o mundo. A sua nova obra, Diário de Uma Ilha Distante, apresenta-se, apesar de interior e espiritual, já com uma nova faceta que encontramos em obras anteriores como Hedonista – a sua primeira obra sobre o amor –, ou Prima Matéria, mais virada para o outro, para a atracção afectiva e física que um ser manifesta pelo outro. Esta é uma história de um imponderável amor.
Para o poeta é através da beleza feminina que o amor supremo toca o coração dos homens, tornando-o na forma mais encantadora que a natureza encontrou para a fidelidade dos amantes, através do reencontro do espírito que encarna na figura feminina. Segundo o autor é, e cito, um «amor que merece as estações, todas as estações, que lhe dão forma. Aliás, um amor não é mais do que a sua história. Se não houver história não há amor digno desse nome. Pela primeira vez, na minha obra, um livro de poemas é a história de um amor. Ou será a história da metáfora (da metafísica poética) de um amor? Talvez seja apenas um amor simbólico.»
Neste novo livro de Mário Máximo existe uma continuidade de poema para poema, como num romance, talvez seja mesmo um romance em forma de poética, onde um capítulo se segue a um novo capítulo, dando-lhe uma estrutura que permite um encadeamento entre a leitura e toda a viagem através do que o poeta elege como fonte de comunicação substancial, aquilo a que chama de veículo, um percurso sobre a poesia onde se chega a Creta, como destino de chegada e de partida. Pode ser outra ilha qualquer, um nome que o poeta guarda para si, mas que promete um dia revelar. «Ela é a Ilha Distante. Ou melhor, a Ilha Distante é o amor enquanto arquétipo
Creta é na mitologia grega a ilha dos amores impossíveis. Foi onde Pasífae amou o touro, transformando a ilha num lugar para sombrios ímpetos, mas ao mesmo tempo ofuscantemente luminosa, onde ao cair da noite se perde o domínio sobre nós próprios, dissipando-se os seus atributos pasifaicos. Apenas as cantigas de amor compreendem o estado de espírito que considera os sentimentos de uma forma subjectiva. No poema X esta expressão ganha a sua máxima dimensão: «À luz da vela ou da Lua a noite / ganha os contornos da paixão. /De onde veio este lugar ermo /onde nos ocultamos do resto do mundo? /A paixão é sempre um lugar ermo /pois apenas existem dois corpos /e dois corações. /Apenas...»
Neste regresso ao mote do amor retoma-se o tema da liberdade através da ascese amorosa, onde o seu núcleo é a mulher, mas onde os amantes se dão reciprocamente, sem recusar coisa nenhuma. «(...)Ofereces-me os seios e eu aceito-os. /Recebo-lhes a ansiedade /na minha boca. /Para que depois eles recebam a ansiedade / das minhas mãos.(…)» (LXIII, pág. 68).
Também este novo livro trás uma nova faceta de Mário Máximo, podemos encontrar uma forma poética onde a pureza cristalina sobressai. O poeta fica ligado à pureza da terra, mas onde o elemento marítimo atinge uma forma absoluta, o poder de encanto das águas. Há nesta obra um encontro da água com a terra onde o poder do fogo, o amor, está sempre presente. Escolhe Creta, ou outra ilha qualquer «ou a ilha onde todos os seus sonhos parecem / cristais verdadeiros.», por ser o lugar ideal para fazer a ligação absoluta entre os vários elementos tão queridos nas obras do autor, que evidenciou na sua introdução de Oração Pagã, o Sol, a Lua, o Ar, a Terra, a Água, o Fogo e a Poesia.
A poesia é para si uma forma de viagem, nela consegue percorrer caminhos, lugares, ilhas e cidades, onde de outra forma não chegaria. Através da metáfora conhece o mundo. Por isso, e cito, «com este Diário de Uma Ilha Distante criei mais um arquétipo dentro de mim. Através da poesia posso percorrer todos os caminhos e chegar a todos os lugares. Mesmo os lugares onde só existe o poder da metáfora!»
Para conhecer e compreender melhor a sua poesia é necessário ler o seu romance A Ilha, nele encontramos todas as respostas para as perguntas que nos assaltam, porque ali estão todos os seus livros. Para quem teve oportunidade de ler todas as suas obras poéticas e agora Diário de Uma Ilha Distante notem se estas frases retiradas do romance não correspondem, de facto, a esta afirmação:
«Se uma leitura de poesia fosse um hábito no seu quotidiano saberia entender o que é uma revelação. Assim como poderia entender o poder de uma metáfora.»
«A sociedade que deixámos perde, em cada dia que passa, a dimensão do romance. Esse romance global que é o caminho único para o tal fim único: o amor. A impoderabilidade está a ser afastada dos quotidianos das sociedades. E a previsibilidade, sua condição antípoda, líquida o romance que exista, não sendo permitido que romance algum comece.» (Pedro Amaro, personagem poeta)
«O nó que não se consegue encontrar é a utopia! Vivemos uma era sem utopia. E se dermos como certo, por definição, utopia é o inatingível, daremos também como certo que o limite que se tende, jamais se alcançando. Isto é, aquilo que relativiza o seu desespero, o meu desespero ou o desespero de qualquer mortal, e o torna suportável. A luz perene que torna todo o sofrimento plausível e heróico. O sentido das coisas.» (Pedro Amaro)
«A preocupação comum tinha um nome: arte. Enquanto que a preocupação dos outros homens resume-se a outra palavra de quatro letras, só uma delas, porém, sendo comum: vida.»
« (uma obra prima é) A interior imperfeição da alma do homem. E a verdadeira arte não é mais do que um hino de cada homem a essa condição.»
«O que os artistas procuram com a sua arte, seja ela qual for, é transcenderem-se e encontrarem o ponto da sua íntima resolução.»
Outra das características da obra de Mário Máximo é a perfeita análise psicológica do homem e da mulher, não só nas suas personagens, pois toda a sua obra reflecte o que é, apesar de ser o que não devia ser, o homem moderno.
Mas em Diário de Uma Ilha Distante, apesar de não abdicar dessas premissas, Mário retoma com alegria literária o tema do amor e da vida, para isso cerca-se de água como tanto gosta. Interroga-se e interroga, procurando respostas na poética e nas sensações, Afinal aquele amor, aquela mulher, nasce assim como se dada à luz em seus sonhos, conquanto «A paixão é sempre um lugar ermo / pois apenas existem dois corpos / e dois corações.», se nesse lugar ermo não existe a sua paixão, se ela não está pintada como em um quadro de Picasso, não existe a felicidade, ou seja a tela não está completa, mas se o amor está presente a obra de arte é toda da sua autoria. Eles são os autores de tudo.
Este novo livro obrigou-me a reler o seu romance e em ambos as analogias são constantes, os lugares, o mar, os segredos, as casas, o amor, a vida, tudo. Se não reparemos, em Diário de Uma Ilha Distante encontramos este poema «Agora resta-nos contornar a miragem / e descobrir o lugar / da ilha da nossa utopia.», no romance lesse «Enquanto houver uma Ilha dentro da Ilha, a utopia terá lugar!». Não será esta composição poética a continuação do amor elevado ao sublime entre Guilherme e Maria Miranda?
Para terminar resta sublinhar que nesta obra Mário Máximo homenageia Natália Correia, uma das suas poetisas de eleição e uma das grandes poetas nossas contemporâneas, apesar de já desaparecida.
Tudo aconteceu como se fosse
aquela ilha que Natália invocava.
“Foi em Creta”, podia eu dizer
como ela o disse um dia escrevendo-o
e foi. Para mim foi em Creta.

Foi em Creta que pude receber
o teu olhar de amêndoa.
O teu estremecer de pequeno peixe
fora de água.
Os teus murmúrios de paixão.

Foi em Creta, Natália.
Foi também nessa ilha de mítico recorte
que algo de sublime
me aconteceu.

Em Diário de Uma Ilha Distante Mário Máximo concretiza o seu saber poético, inspiração, como lhe chama, aliando a metáfora aos elementos naturais e ao amor. Por isso, nesta obra a poesia é a palavra aliada à estética, tornando-a numa forma absoluta de arte. Por isso, a sua grande riqueza é as palavras. Não é de ouro o silêncio. São de ouro as palavras que guarda nas páginas dos seus livros e que nos transmite.
Alfredo Vieira

domingo, 14 de setembro de 2008

Poesia fórmula absoluta de arte

Foi pedido pelo meu caro amigo Oscar Martina o encargo de dissertar sobre a relevância da poesia nos dia de hoje, qual o tipo de intervenção que o poeta deve ter junto dos leitores, a forma de interpretar a poesia e qual o conceito de criatividade. Desde já agradeço a sua lembrança e espero corresponder, na medida das minhas limitações, ao pedido feito, não o pude recusar, já que se trata de um amigo, que está inserido num grupo de poetas que me é muito caro, pois aceitaram-me no seu seio desde a primeira hora, dando-me a honra de prefaciar o primeiro livro da sua tertúlia. Não vou seguir preceito pedido, preferi encadear todos os temas tornando mais fácil a sua interpretação por toda a plateia. Espero não os maçar muito.
Roman Yakobson, numa magnífica lição proferida em 1968 na Universidade Clássica de Lisboa disse: «Como se sabe a palavra poesia é de origem grega, prende-se a um verbo que significa criar e, na verdade, a poesia sendo o único aspecto criador, é o domínio mais vasto da linguagem. Quanto à palavra verso, tem a mesma raiz que prosa, visto que a prosa deriva de provorsa, proversa; oratio proversa é aquele que caminha resolutamente em frente, com uma direcção estrita. Além disso, versus quer dizer retorno, um discurso que comporta regressos – e penso ser este um fenómeno fundamental de que podemos tirar grande número de ilações». O verso é o que é feito de quebras, retornos e regressos, desenhando assim um perfil de ocupação de páginas em branco. Se a prosa se presta para dizer continuidades, o verso serve para as descontinuidades.
Por isso há momentos na vida em que se descobre algo dentro de nós que se encontrava escondido ou reprimido, vozes que muitas vezes não se querem ouvir, mas algum dia despertam da sua letargia e se tornam mais fortes que o ser humano que as transporta. A poesia está dentro de nós a incubar, como bicho que nos vai corroendo e qual doença que se manifesta, emerge, e nesse dia nada há a fazer senão agarrar na pena e escrever o que nos vai na alma. É deixar avançar o espírito, já que ele conduz a mão, e soltar o brotar das palavras. Fala-se de amor, mas não se esquecem os dramas sociais, nem o passado glorioso deste povo, assim como da civilização cristã, da qual indubitavelmente fazemos parte. Como é natural, não é só a inspiração que nos leva à criatividade, a leitura da grande poesia e dos grandes poetas portugueses é essencial para a sua compreensão e a melhor forma de aplicar a nossa criatividade, não devemos sentir-nos tentados a copiar estilos literários, devemos sim apostar na inovação, na novidade.
A poesia só é absoluta expressão de criatividade quando permite ao leitor a abertura de portas que, para ele, são essenciais para se afirmar como SER, sobretudo como SER superior, um SER que está na posse, não apenas de uma consciência, mas também de um lugar fundamental no seio da comunidade onde vive.
O sujeito poético integrasse no contexto temporal em que vive, pelo que seria impensável a elaboração de um poema como Os Lusíadas no século XXI. A expressão poética é filha do seu tempo, é uma consequência directa da contingência histórica.
Daí a grande força da poesia portuguesa: a sua qualidade criativa, onde muitos poetas diferem, mas ao mesmo tempo cria uma enorme unidade em torno dessa mesma poesia. Esta é também uma das funções sociais da poesia: a unidade na diversidade de um povo.
Contudo, várias são as funções sociais da poesia na formação dos povos, primeiro com a tradição oral, onde se transmite de geração em geração, através da narração, os feitos heróicos dos antepassados, enfabulados ou ficcionados, mas que ajudavam à memória dos povos. Depois, com o aparecimento da escrita foi possível postar parte desses testemunhos para a posteridade.
Na tradição oral a forma versejada servia para uma memorização mais fácil das epopeias, pelo menos no seu essencial. A escrita poética acabou por revolucionar a vida das civilizações, servindo no aspecto cultural, mas também no aspecto social e económico – muitos tratados de astronomia e agronomia, por exemplo, foram escritos em formas versejadas, assim como na medicina e na religião, ao serem criadas em forma rimada lengalengas, rezas, mezinhas. Com o aparecimento da prosa os tratados passaram a utilizar esta como forma literária, ou seja, o poema, cujo objectivo é a transmissão de informação foi substituído pela prosa, mantendo, contudo, a poesia para as epopeias, cantigas e para o drama teatralizado, entre outras utilizações.
É a partir destes desenvolvimentos que a poesia cumpre parte da sua função social como fonte de prazer e de conhecimento. Se não proporcionasse prazer, se não transmitisse sentimentos, então não cumpria os seus desígnios, acabando por não se sentir o seu efeito social. A poesia que dá prazer acaba por influenciar mesmo aqueles que não a lêem.
No entender de Eliot «a poesia difere de todas as artes, em possuir um valor, para os que pertencem à mesma raça e falam a mesma língua que o poeta», por isso a poesia adquire um carácter de identidade nacional, onde os naturais desse idioma sentem e tomam os poetas como seus (casos de Camões e Pessoa, para só falar dos nossos poetas maiores), entendendo-os melhor que aqueles que não se expressam na mesma língua. A poesia traduzida não tem, muitas vezes, o mesmo sentimento que lida pela língua de origem. É neste contexto que a poesia se transforma em parte de um processo civilizacional, quando deixa de ter uma influência directa sobre um povo essa cultura começa a ser absorvida por outra superior. Neste pressuposto o poeta tem o dever de promover a sua língua em primeiro lugar para a conservar e seguidamente para a alargar e melhorar, devendo chegar às pessoas, de forma a alterar os sentimentos, tornando o seu povo mais consciente, dando-lhe a conhecer a sua história, mas, ao mesmo tempo, dentro de um processo evolutivo da língua e da civilização em que está inserido, acabando o poeta por ter de se aperceber da evolução do mundo. Se isto não acontecer vaticina-se o pior para as línguas e para as civilizações, se não continuarem a surgir grandes autores e principalmente grandes poetas, a língua decairá, podendo a literatura dos nossos antepassados chegar ao ponto de ser completamente estranha e desaparecer.
Partindo deste princípio as boas obras são intemporais, mas para que tenham esse carácter de intemporalidade têm de haver novos autores que persigam a tradição dos seus antepassados, sobretudo os poetas. Devem estar à frente do seu tempo, permitindo trazer novidade à literatura, assim como às outras artes. É este aspecto que leva a que os grandes poetas não sejam, muitas vezes, reconhecidos pelos seus contemporâneos, mas, nas gerações seguintes. Os grandes poetas têm o dever de influenciar os novos escritores.
Na realidade a função social da poesia é «o facto de ela afectar, proporcionalmente à sua excelência e vigor, o falar e a sensibilidade de toda a nação» (T. S. Eliot). No entanto, considera-se que a poesia, apesar da identidade nacional que experimenta, não se deve perder de todo o encadeamento continental e mundial, se um país perde a sua poesia e os seus poetas pode ser todo um continente ou toda a humanidade que perde a sua identidade. «O começo de um declínio, que significaria que em toda a parte os homens iriam deixar saber de expressar-se e, consequentemente, deixariam de ser capazes de sentir as emoções de seres civilizados.» (T. S. Eliot)
A poesia é uma forma de estética e de beleza no seu olhar sobre mundo e da sua evolução civilizacional. Fazendo parte de todo um processo evolutivo, muito os povos lhe devem como arte, já que ela é considerada por muitos como a sua forma suprema, sobretudo nas áreas literárias. A poesia cumpre, enquanto forma perfeita de trabalhar as palavras, funções sociais muito importantes, como são o conhecimento da história, mesmo que ficcionada, como forma de comunicação, permitindo a evolução linguística de uma comunidade, mas, essencialmente, o que a poesia dá aos povos, sobretudo aos naturais da língua, é uma grande fonte de prazer. Mesmo que muitos não a leiam ela faz parte do saber, da formação cultural e da sua identidade enquanto povo e enquanto nação. A língua portuguesa leva mais longe esses desígnios e consegue expandir essa função social aos países com quem contactou e influenciou culturalmente durante séculos, pois os povos dos países falantes da língua portuguesa entendem de uma forma especial a poesia produzida por essa comunidade linguística, servindo como ponto essencial de ligação cultural e social desses povos, tão diferentes, mas tão iguais, pelas raízes que adquiriram em comum, também através da poesia.
Sendo a poesia a expressão da palavra essencial, como nos diz Adolfo Casais Monteiro, cabe ao poeta, segundo Eliot, a obrigação de explorar, de procurar os signos, ou palavras, para o inarticulado, de buscar sentimentos que todos nós mal podemos sentir, porque não têm palavras para eles; e, ao mesmo tempo, recorda que o explorador para além fronteiras da consciência comum só poderá regressar e contar o que viu aos seus semelhantes, se tiver sempre uma completa percepção das realidades que eles já conhecem.
Se a poética foi personalizada, mostrar as emoções e os sentimentos, com tempo vai dissipar-se, não marcando mais que um período vago, acabando por não trazer nada de novo ao panorama literário. Ao mesmo tempo muitos críticos, e essa tendência nota-se mais no jornalismo, têm a aptidão de analisar a vida do autor, colocando-a em concordância com a sua obra, chegando ainda a relegar essa mesma obra para segundo plano. O mundo das emoções pessoais, da vivência social, não é, ou não deve ser perceptível na escrita – o que não quer dizer que não possa ser aplicada. A vida do poeta pode ser banal, como o de qualquer outra pessoa, contudo o seu espírito criativo é algo que se transcende quando se cria a obra. Foge ao fútil, ao quotidiano e é partindo deste pressuposto que o poeta é notável e interessante. A forma como se encara a poesia deve deixar transparecer o que não é natural para os homens, o que não é óbvio e singular, deve ser-se consciente e inconsciente, não tornando a obra pessoal, apesar do poeta se rever nela. O que está no verso pode ser tudo, posso ser eu, podemos ser todos, mas, ao mesmo tempo, não ser ninguém.
O que se deve distinguir é a obra, não o autor e a sua vida, ou seja, o artista mais perfeito e que pode produzir uma obra de arte é aquele que consegue separar a arte do homem. Tudo o que o poeta precisa para escrever a sua obra vai-se formando no seu espírito, até criar uma unidade que possa ser formada e transmitida na sua nova obra.
Além do mais os poetas contemporâneos têm hoje à sua disposição um privilégio, o de poderem escolher entre três subgéneros do género a que se dedicam, a poesia lírica. São eles o poema em verso (medido, livre, rimado ou sem rima), o poema em prosa e o poema visual.
Esta situação, que veio sendo preparada ao longo do século XX, mas que teve início em meados do século XIX, resulta da acção de movimentos de vanguarda que produziram a erosão de conceitos clássicos da concepção e da construção dos poemas líricos no mundo ocidental. Não se trata de uma sistematização formal, mas sim, o reconhecimento de diferentes estéticas escriturais da poesia que hoje coabitam universalmente no espaço da emoção e da invenção.
A grande riqueza da poesia é transformar o esperado no inesperado, juntar conceitos, mas, ao mesmo tempo provocar a sua desconexão, numa mistura de sensibilidades e imaginação pessoal ao serviço da inteligência estética, ou seja, a poesia é a palavra aliada à estética, tornando-a numa forma absoluta de arte.
Alfredo Vieira