segunda-feira, 29 de outubro de 2007

O poder do amor e da metáfora

ANTEVISÃO DA NOVA OBRA DE MÁRIO MÁXIMO

É do amor que se constrói a essência da poesia
Mário Máximo em Prima Materia

O último livro de Mário Máximo Hangar de Sonhos – Odes Brancas é uma obra de introspecção, onde os sonhos e as utopias formam o conjunto natural da obra poética. Um livro virando para o interior do Poeta onde se faz uma reflexão sobre o seu íntimo, sobre as suas experiências, numa observação e descrição dos seus pensamentos e sentimentos numa forma própria de olhar o mundo. A sua nova obra, Diário de Uma Ilha Distante, apresenta-se, apesar de interior e espiritual, já com uma nova faceta que encontramos em obras anteriores como Hedonista – a sua primeira obra sobre o amor –, ou Prima Matéria, mais virada para o outro, para a atracção afectiva e física que um ser manifesta pelo outro. Esta é uma história de um imponderável amor.
Para os poetas é através da beleza feminina que o amor supremo toca o coração dos homens, tornando-o na forma mais encantadora que a natureza encontrou para a fidelidade dos amantes, através do reencontro do espírito que encarna na figura feminina. Segundo o autor é um «amor que merece as estações, todas as estações, que lhe dão forma. Aliás, um amor não é mais do que a sua história. Se não houver história não há amor digno desse nome. Pela primeira vez, na minha obra, um livro de poemas é a história de um amor. Ou será a história da metáfora (da metafísica poética) de um amor? Talvez seja apenas um amor simbólico.»
Nesta nova obra de Mário Máximo existe uma continuidade de poema para poema, como num romance, onde um capítulo se segue a um novo capítulo, dando-lhe uma estrutura que permite um encadeamento entre o leitura e toda a viagem através do que o poeta elege como fonte de comunicação substancial, aquilo a que chama de veículo, um percurso sobre a poesia onde se chega a Creta como destino de chegada e de partida. «Ela é a Ilha Distante. Ou melhor, a Ilha Distante é o amor enquanto arquétipo.»
Creta é na mitologia grega a ilha dos amores impossíveis. Foi onde Pasífae amou o touro, transformando a ilha num lugar para sombrios ímpetos, mas ao mesmo tempo ofuscantemente luminosa, onde ao cair da noite se perde o domínio sobre nós próprios, dissipando-se os seus atributos pasifaicos. Apenas as cantigas de amor compreendem o estado de espírito que considera os sentimentos de uma forma subjectiva. No poema X (pág. 15) esta expressão ganha a sua máxima dimensão: «À luz da vela ou da Lua a noite / ganha os contornos da paixão. / De onde veio este lugar ermo / onde nos ocultamos do resto do mundo? / A paixão é sempre um lugar ermo / pois apenas existem dois corpos / e dois corações. / Apenas...»
Neste regresso ao tema do amor retoma-se o tema da liberdade através da ascese amorosa, onde o seu núcleo é a mulher, mas onde os amantes se dão reciprocamente, sem recusar coisa nenhuma. «(...)Ofereces-me os seios e eu aceito-os. / Recebo-lhes a ansiedade / na minha boca. / Para que depois eles recebam a ansiedade / das minhas mãos.(…)» (LXIII, pág. 68).
Também este novo livro trás uma nova faceta de Mário Máximo, podemos encontrar uma forma poética onde a pureza cristalina sobressai. O Poeta fica ligado à pureza da terra, mas onde o elemento marítimo atinge uma forma absoluta, o poder de encanto das águas. Há nesta obra um encontro da água com a terra onde o poder do fogo, o amor, está sempre presente. Escolhe Creta por ser o lugar ideal para fazer a ligação absoluta entre os vários elementos tão queridos nas obras do autor, que evidenciou na sua introdução de Oração Pagã, o Sol, a Lua, o Ar, a Terra, a Água, o Fogo e a Poesia.
A poesia é para si uma forma de viagem, nela consegue percorrer caminhos, lugares, ilhas e cidades, onde de outra forma não chegaria. Através da metáfora conhece o mundo. Por isso, «com este Diário de Uma Ilha Distante criei mais um arquétipo dentro de mim. Através da poesia posso percorrer todos os caminhos e chegar a todos os lugares. Mesmo os lugares onde só existe o poder da metáfora!»
Em Diário de Uma Ilha Distante Mário Máximo concretiza o seu saber poético, inspiração, como lhe chama, aliando a metáfora aos elementos naturais e ao amor. Por isso, nesta obra a poesia é a palavra aliada à estética, tornando-a numa forma absoluta de arte.

LVIII

De vez em quando retornamos à ilha:
retornamos a Creta.
É uma espécie de ilha da memória:
a miragem à frente dos nossos olhos.

Todavia, nós somos reais dentro da miragem.
(pág. 63)
Alfredo Vieira

Heterónimos e pseudónimos

Há alguns anos que a questão dos heterónimos tem vindo a ser debatida nos meios académicos e nas tertúlias literários com algum fervor, até porque, à medida que iam aparecendo obras de Fernando Pessoa, mais se dissertava sobre heterónimos e sobre a sua verdade.
É certo que Pessoa apresentou uma explicação a Adolfo Casais Monteiro, numa célebre carta de 13 de Janeiro de 1935, a génese da sua escrita e o aparecimento dos heterónimos, que acabou por ser publicada num compilação de textos do poeta, nas suas obras completas, Textos de Crítica e de Intervenção, publicado pelas Edições Ática em 1993. No entanto, muito se continua a falar sobre a veracidade do que Pessoa dizia ser um «fundo traço de histeria que existe em mim», para explicar a origem dos seus heterónimos. Mas, mais que o seu estado de espírito, o importante é notar a diferença que existe entre as várias facetas do autor ou dos autores.
Quem conhece a obra de Fernando Pessoa e dos seus heterónimos consegue avaliar as diferenças profundas que existe entre os diversos nomes adoptados para cada estilo literário do Poeta. Aliás, Fernando Pessoa nessa mesma carta dá a entender a Adolfo Casais Monteiro que nunca pensou publicar as obras dos seus heterónimos, «todos eles têm de ser, na prática da publicação, preteridos pelo Fernando Pessoa, impuro e simples!». Chega mesmo a avaliar os seus heterónimos e semi-heterónimos, a sua forma de escrever e de estar na vida.
De facto, existiu um estilo em Fernando Pessoa, assim como estilo próprio em Alberto Caeiro, em Ricardo Reis e em Álvaro de Campos. São notórias as diferenças literárias entre si e o que o Poeta dizia ser a «origem mental dos meus heterónimos», que estava na sua tendência «orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação». tudo era fruto da sua inteligência, da sua forma intuitiva e criativa que «fazem explosão para dentro e vivo-os a sós comigo». Tudo terminava «em silêncio e poesia…». Tudo se passava, dizia, independentemente do ortónimo. Chegava a considerar que existiam discussões estéticas entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, e que talvez as desse à luz do dia através da sua publicação. Adolfo Casais Monteiro poderia notar as diferenças entre ambos «verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria».
Independentemente destas considerações do Poeta a Adolfo Casais Monteiro, a importância desta carta serve para se conhecer a problemática dos heterónimos e da forma discutível como se tem abordado a questão.
A heteronomia é um processo literário em que um autor escreve encarnando personalidades fictícias que representam a pluralidade da sua mundividência, aliás Fernando Pessoa reconhece que criava personagens que o acompanhavam, ditando mesmo o seu nascimento e a sua morte, essas manifestações começaram a produzir-se muito cedo, desde os seis anos criou um heterónimo, Chevalier de Pas, que escrevia cartas a Pessoa. Os heterónimos são diferentes dos pseudónimos, são personalidades poéticas completas: identidades, que, em princípio falsas, tornam-se verdadeiras através da sua manifestação artística própria e diversa do autor original, e isto manifesta-se no Poeta, independentemente de existir uma mudança de personalidade, como algumas vezes Pessoa quer fazer crer.
Nos últimos anos têm aparecido obras onde se admite que os seus autores têm alterações de personalidade, de comportamento e de escrita, podendo levar a pensar a existência de heterónimos, quando na realidade não passam de simples pseudónimos que os autores utilizam em formas literárias diferentes. E quando se fala em formas literárias diferentes pensamos, por exemplo, em Rómulo de Carvalho, que adoptou como pseudónimo poético o nome de António Gedeão, enquanto que o nome de baptismo serviu de chancela a livros técnicos.Há que distinguir quem tem efectivamente heterónimos, de quem tenta passar para os leitores a existência na sua génese literária de obras com características e tendências próprias, diversas do autor verdadeiro, muitas vezes nem existem outras obras para comparar a diversidade e a diferença de tendências. Por isso, não se pode falar de heteronomia. E, neste aspecto, a crítica especializada tem o papel importante de desmistificar o aproveitamento que se faz da palavra, distinguindo heterónimos de pseudónimos, porque, de facto, existem heterónimos do ortónimo Fernando Pessoa, e, até hoje, apesar se pressupor a existência de outros autores com características e tendências diversas, o certo é que não foi ainda possível encontrar a diversidade e a unidade do Poeta.
Alfredo Vieira