terça-feira, 23 de setembro de 2008

NOVAS OPORTUNIDADES PERDIDAS

Recentemente tive algumas experiências com pessoas que obtêm escolaridade através do chamado programa Novas Oportunidades ou através dos cursos de formação profissional do IEFP.
Apesar de achar louvável que se erradique o analfabetismo, se aumente o grau de escolaridade, se dê mais competência e formação profissional, penso que esta não é a melhor solução, mantêm-se a iliteracia e as dificuldades de compreensão da língua materna.
Quer o programa Novas Oportunidades, quer a formação profissional, acaba por criar falsos índices de escolaridade, servem só para as estatísticas da União Europeia.
Como comecei por escrever ia dissertar sobre as experiências que tive com pessoas saídas desses programas, talvez seja essa a melhor forma de elucidar o que quero transmitir.
Uma pessoa apresentou-se a uma entrevista para emprego com um certificado de habilitações onde constava o nono ano de escolaridade e um curso de cozinheira. Quando li o currículo e a ficha de inscrição estes vinham carregados de erros ortográficos, frases mal construídas; numa ficha de leitura sobre uma receita de culinária a pessoa não entendia o que se pedia, nas explicações sobre a confecção do prato baralhou tudo, não sabia por onde começar, diga-se que a receita era complicada de executar, mas para uma pessoa com o nono ano e um curso de cozinheira deveria ser fácil. Convém dizer, para melhor compreensão, que a pessoa em questão tinha quarenta e cinco anos e quando iniciou a formação profissional as suas habilitações literárias eram o quarto ano concluído há cerca de trinta e cinco anos. É óbvio que não vou julgar a pessoa, até porque não tenho esse direito, nem a condenar por o Estado lhe dar um certificado de habilitações que não corresponde à verdade. Como profissional a pessoa era auto-suficiente, devidamente acompanhada por uma cozinheira com experiência na empresa, mostra-se empenhada, com regularidade pontual e uma evolução profissional muito boa, até porque sabe ser esta uma das últimas oportunidades de integrar o mundo do trabalho.
Esta pessoa acabou por me demonstrar o artificialismo que o Estado Português usa para mostrar níveis de escolaridade, ou melhor, de conhecimentos que não existem no país.
Depreende-se por habilitações os índices de estudo, conhecimento e literacia, por isso se chamam habilitações literárias, e não as competências profissionais; para julgar e compensar os trabalhadores existem as carreiras profissionais.
De forma nenhuma sou contra estes cursos de formação profissional, bem pelo contrário, sou contra que eles servirem só para as estatísticas. Para isso dever-se-ia acompanhar essas acções com aulas complementares de português, línguas estrangeiras, acção cívica e uma ou outra disciplina escolar correspondente à área de formação.
Está-se a criar artificialismos que mais tarde poderemos pagar caro. Os estudantes, que têm de passar nove e dez horas nas escolas, onde os pais têm de pagar pelos livros, pelo material escolar, pelos transportes e pelas refeições, acabam por abandonar a escola e esperam por uma dessas acções de formação, até porque auferem subsídios de toda a ordem e o trabalho intelectual não é grande.
Em conclusão: estas iniciativas de formação contínua são de aplaudir, mas devem ser acompanhadas com outras disciplinas que não só as profissionais; a integração neste universo de ensino deve servir para pessoas que estão desempregadas, ou com dificuldades de aprendizagem e integração na escola tradicional. Perante uma avaliação idónea, onde os formandos tenham, de facto, aproveitamento, conheçam pelo menos a língua portuguesa, então sim atribuir-se um certificado de habilitações. Para as pessoas que terminam estes cursos profissionais, nos moldes actuais, entregue-se um diploma que ateste as suas capacidades para exercer a profissão.
Alfredo Vieira

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Mário Máximo o segredo das utopias

Um dia recebi um livro em casa que me animou a atenção pela sua capa, que isto de apresentação das capas é muito importante, as editoras inglesas e americanas são peritas na estética das capas como forma de promoção dos livros, o título pouco me dizia, contudo comecei a lê-lo e de forma automática os espaços livres nas páginas encheram-se de apontamentos e anotações que me ocorriam sobre o que estava a decifrar. Desconhecia completamente o autor, nunca lera nada dele, mas o interesse que me despertou apontou-o logo como um dos melhores poetas contemporâneos que me fora dado a ler.
Trata-se de Oração Pagã. Assim entrei em contacto com a obra de Mário Máximo.
Durante um bom par de anos desconheci por completo o percurso literário de Mário Máximo, que, entretanto, publicara o seu romance A Ilha e um novo livro de poemas: Prima Materia. Um dia na redacção do Triângulo (Jornal Regional) foi-me proposto fazer uma entrevista ao homem que estava ligado ao CESDIS e a outras tertúlias culturais, assim como ao movimento político de Odivelas. Conheci-o pessoalmente no Odivelas Parque e no meio de todo aquele barulho conseguimos conversar. Falámos de utopias, da globalização, não desta globalização que conhecemos, mas da globalização dos povos, falámos de literatura, sobretudo de poesia. Nesse dia 10 de Janeiro de 2004 descobri que tínhamos algo em comum. Ao ler a introdução da Prima Materia fiquei a saber da sua paixão pelas viagens, nomeadamente por Paris, a minha capital de eleição, Santiago de Compostela, lugar místico, numa mistura de fé e paganismo, cidade de retiro e meditação. Podemos não estar de acordo sobre a serra da Lousã, talvez por não conhecer bem a serra, mas com certeza que não a vou trocar pela ilha de São Miguel, o paraíso em pleno Atlântico. Da Grécia e das suas ilhas fica o mitológico e o berço da civilização moderna.
Dai continuou a minha admiração pelo seu trabalho literário, que tenho a vindo a descobrir com agradável surpresa, até pelos momentos de prazer que as suas obras me proporcionam, já que vivo sobre a doce tirania das artes, do belo.
Noto na obra de Mário Máximo a sua paixão por ilhas, quer no seu romance quer agora em Diário de Uma Ilha de Distante. Esta sua paixão advém dos seus sonhos, ou melhor, das suas utopias. Este seu apego às utopias começam com Thomas Moore, da sua ilha e do navegante de origem portuguesa, que encontra o lugar, não direi idílico, mas ideal para viver: a Ilha da Utopia. De seguida leva-nos até A Nova Atlântida de Francis Bacon e recebe-nos no seu encontro com o vale de Xangri-La, em o Horizonte Perdido de James Hilton, esse sim lugar idílico, local mágico de eterna juventude e longa felicidade, que se perde quando se passa para este lado, o verdadeiro mundo, o real, onde já não existem utopias.
Mário Máximo, contudo, continua a acreditar nas utopias, apesar de estas serem inatingíveis para a maioria dos mortais, mas para os poetas essa é uma sua luta constante e heróica, uma luta consigo próprio, desesperante, por isso continua a crer no amor, marca que deixa sempre nas suas obras.
O penúltimo livro de Mário Máximo Hangar de Sonhos – Odes Brancas é uma obra de introspecção, onde os sonhos e as utopias formam o conjunto natural da obra poética. Um livro virando para o interior do poeta onde se faz uma reflexão sobre o seu íntimo, sobre as suas experiências, numa observação e descrição dos seus pensamentos e sentimentos numa forma própria de olhar o mundo. A sua nova obra, Diário de Uma Ilha Distante, apresenta-se, apesar de interior e espiritual, já com uma nova faceta que encontramos em obras anteriores como Hedonista – a sua primeira obra sobre o amor –, ou Prima Matéria, mais virada para o outro, para a atracção afectiva e física que um ser manifesta pelo outro. Esta é uma história de um imponderável amor.
Para o poeta é através da beleza feminina que o amor supremo toca o coração dos homens, tornando-o na forma mais encantadora que a natureza encontrou para a fidelidade dos amantes, através do reencontro do espírito que encarna na figura feminina. Segundo o autor é, e cito, um «amor que merece as estações, todas as estações, que lhe dão forma. Aliás, um amor não é mais do que a sua história. Se não houver história não há amor digno desse nome. Pela primeira vez, na minha obra, um livro de poemas é a história de um amor. Ou será a história da metáfora (da metafísica poética) de um amor? Talvez seja apenas um amor simbólico.»
Neste novo livro de Mário Máximo existe uma continuidade de poema para poema, como num romance, talvez seja mesmo um romance em forma de poética, onde um capítulo se segue a um novo capítulo, dando-lhe uma estrutura que permite um encadeamento entre a leitura e toda a viagem através do que o poeta elege como fonte de comunicação substancial, aquilo a que chama de veículo, um percurso sobre a poesia onde se chega a Creta, como destino de chegada e de partida. Pode ser outra ilha qualquer, um nome que o poeta guarda para si, mas que promete um dia revelar. «Ela é a Ilha Distante. Ou melhor, a Ilha Distante é o amor enquanto arquétipo
Creta é na mitologia grega a ilha dos amores impossíveis. Foi onde Pasífae amou o touro, transformando a ilha num lugar para sombrios ímpetos, mas ao mesmo tempo ofuscantemente luminosa, onde ao cair da noite se perde o domínio sobre nós próprios, dissipando-se os seus atributos pasifaicos. Apenas as cantigas de amor compreendem o estado de espírito que considera os sentimentos de uma forma subjectiva. No poema X esta expressão ganha a sua máxima dimensão: «À luz da vela ou da Lua a noite / ganha os contornos da paixão. /De onde veio este lugar ermo /onde nos ocultamos do resto do mundo? /A paixão é sempre um lugar ermo /pois apenas existem dois corpos /e dois corações. /Apenas...»
Neste regresso ao mote do amor retoma-se o tema da liberdade através da ascese amorosa, onde o seu núcleo é a mulher, mas onde os amantes se dão reciprocamente, sem recusar coisa nenhuma. «(...)Ofereces-me os seios e eu aceito-os. /Recebo-lhes a ansiedade /na minha boca. /Para que depois eles recebam a ansiedade / das minhas mãos.(…)» (LXIII, pág. 68).
Também este novo livro trás uma nova faceta de Mário Máximo, podemos encontrar uma forma poética onde a pureza cristalina sobressai. O poeta fica ligado à pureza da terra, mas onde o elemento marítimo atinge uma forma absoluta, o poder de encanto das águas. Há nesta obra um encontro da água com a terra onde o poder do fogo, o amor, está sempre presente. Escolhe Creta, ou outra ilha qualquer «ou a ilha onde todos os seus sonhos parecem / cristais verdadeiros.», por ser o lugar ideal para fazer a ligação absoluta entre os vários elementos tão queridos nas obras do autor, que evidenciou na sua introdução de Oração Pagã, o Sol, a Lua, o Ar, a Terra, a Água, o Fogo e a Poesia.
A poesia é para si uma forma de viagem, nela consegue percorrer caminhos, lugares, ilhas e cidades, onde de outra forma não chegaria. Através da metáfora conhece o mundo. Por isso, e cito, «com este Diário de Uma Ilha Distante criei mais um arquétipo dentro de mim. Através da poesia posso percorrer todos os caminhos e chegar a todos os lugares. Mesmo os lugares onde só existe o poder da metáfora!»
Para conhecer e compreender melhor a sua poesia é necessário ler o seu romance A Ilha, nele encontramos todas as respostas para as perguntas que nos assaltam, porque ali estão todos os seus livros. Para quem teve oportunidade de ler todas as suas obras poéticas e agora Diário de Uma Ilha Distante notem se estas frases retiradas do romance não correspondem, de facto, a esta afirmação:
«Se uma leitura de poesia fosse um hábito no seu quotidiano saberia entender o que é uma revelação. Assim como poderia entender o poder de uma metáfora.»
«A sociedade que deixámos perde, em cada dia que passa, a dimensão do romance. Esse romance global que é o caminho único para o tal fim único: o amor. A impoderabilidade está a ser afastada dos quotidianos das sociedades. E a previsibilidade, sua condição antípoda, líquida o romance que exista, não sendo permitido que romance algum comece.» (Pedro Amaro, personagem poeta)
«O nó que não se consegue encontrar é a utopia! Vivemos uma era sem utopia. E se dermos como certo, por definição, utopia é o inatingível, daremos também como certo que o limite que se tende, jamais se alcançando. Isto é, aquilo que relativiza o seu desespero, o meu desespero ou o desespero de qualquer mortal, e o torna suportável. A luz perene que torna todo o sofrimento plausível e heróico. O sentido das coisas.» (Pedro Amaro)
«A preocupação comum tinha um nome: arte. Enquanto que a preocupação dos outros homens resume-se a outra palavra de quatro letras, só uma delas, porém, sendo comum: vida.»
« (uma obra prima é) A interior imperfeição da alma do homem. E a verdadeira arte não é mais do que um hino de cada homem a essa condição.»
«O que os artistas procuram com a sua arte, seja ela qual for, é transcenderem-se e encontrarem o ponto da sua íntima resolução.»
Outra das características da obra de Mário Máximo é a perfeita análise psicológica do homem e da mulher, não só nas suas personagens, pois toda a sua obra reflecte o que é, apesar de ser o que não devia ser, o homem moderno.
Mas em Diário de Uma Ilha Distante, apesar de não abdicar dessas premissas, Mário retoma com alegria literária o tema do amor e da vida, para isso cerca-se de água como tanto gosta. Interroga-se e interroga, procurando respostas na poética e nas sensações, Afinal aquele amor, aquela mulher, nasce assim como se dada à luz em seus sonhos, conquanto «A paixão é sempre um lugar ermo / pois apenas existem dois corpos / e dois corações.», se nesse lugar ermo não existe a sua paixão, se ela não está pintada como em um quadro de Picasso, não existe a felicidade, ou seja a tela não está completa, mas se o amor está presente a obra de arte é toda da sua autoria. Eles são os autores de tudo.
Este novo livro obrigou-me a reler o seu romance e em ambos as analogias são constantes, os lugares, o mar, os segredos, as casas, o amor, a vida, tudo. Se não reparemos, em Diário de Uma Ilha Distante encontramos este poema «Agora resta-nos contornar a miragem / e descobrir o lugar / da ilha da nossa utopia.», no romance lesse «Enquanto houver uma Ilha dentro da Ilha, a utopia terá lugar!». Não será esta composição poética a continuação do amor elevado ao sublime entre Guilherme e Maria Miranda?
Para terminar resta sublinhar que nesta obra Mário Máximo homenageia Natália Correia, uma das suas poetisas de eleição e uma das grandes poetas nossas contemporâneas, apesar de já desaparecida.
Tudo aconteceu como se fosse
aquela ilha que Natália invocava.
“Foi em Creta”, podia eu dizer
como ela o disse um dia escrevendo-o
e foi. Para mim foi em Creta.

Foi em Creta que pude receber
o teu olhar de amêndoa.
O teu estremecer de pequeno peixe
fora de água.
Os teus murmúrios de paixão.

Foi em Creta, Natália.
Foi também nessa ilha de mítico recorte
que algo de sublime
me aconteceu.

Em Diário de Uma Ilha Distante Mário Máximo concretiza o seu saber poético, inspiração, como lhe chama, aliando a metáfora aos elementos naturais e ao amor. Por isso, nesta obra a poesia é a palavra aliada à estética, tornando-a numa forma absoluta de arte. Por isso, a sua grande riqueza é as palavras. Não é de ouro o silêncio. São de ouro as palavras que guarda nas páginas dos seus livros e que nos transmite.
Alfredo Vieira

domingo, 14 de setembro de 2008

Poesia fórmula absoluta de arte

Foi pedido pelo meu caro amigo Oscar Martina o encargo de dissertar sobre a relevância da poesia nos dia de hoje, qual o tipo de intervenção que o poeta deve ter junto dos leitores, a forma de interpretar a poesia e qual o conceito de criatividade. Desde já agradeço a sua lembrança e espero corresponder, na medida das minhas limitações, ao pedido feito, não o pude recusar, já que se trata de um amigo, que está inserido num grupo de poetas que me é muito caro, pois aceitaram-me no seu seio desde a primeira hora, dando-me a honra de prefaciar o primeiro livro da sua tertúlia. Não vou seguir preceito pedido, preferi encadear todos os temas tornando mais fácil a sua interpretação por toda a plateia. Espero não os maçar muito.
Roman Yakobson, numa magnífica lição proferida em 1968 na Universidade Clássica de Lisboa disse: «Como se sabe a palavra poesia é de origem grega, prende-se a um verbo que significa criar e, na verdade, a poesia sendo o único aspecto criador, é o domínio mais vasto da linguagem. Quanto à palavra verso, tem a mesma raiz que prosa, visto que a prosa deriva de provorsa, proversa; oratio proversa é aquele que caminha resolutamente em frente, com uma direcção estrita. Além disso, versus quer dizer retorno, um discurso que comporta regressos – e penso ser este um fenómeno fundamental de que podemos tirar grande número de ilações». O verso é o que é feito de quebras, retornos e regressos, desenhando assim um perfil de ocupação de páginas em branco. Se a prosa se presta para dizer continuidades, o verso serve para as descontinuidades.
Por isso há momentos na vida em que se descobre algo dentro de nós que se encontrava escondido ou reprimido, vozes que muitas vezes não se querem ouvir, mas algum dia despertam da sua letargia e se tornam mais fortes que o ser humano que as transporta. A poesia está dentro de nós a incubar, como bicho que nos vai corroendo e qual doença que se manifesta, emerge, e nesse dia nada há a fazer senão agarrar na pena e escrever o que nos vai na alma. É deixar avançar o espírito, já que ele conduz a mão, e soltar o brotar das palavras. Fala-se de amor, mas não se esquecem os dramas sociais, nem o passado glorioso deste povo, assim como da civilização cristã, da qual indubitavelmente fazemos parte. Como é natural, não é só a inspiração que nos leva à criatividade, a leitura da grande poesia e dos grandes poetas portugueses é essencial para a sua compreensão e a melhor forma de aplicar a nossa criatividade, não devemos sentir-nos tentados a copiar estilos literários, devemos sim apostar na inovação, na novidade.
A poesia só é absoluta expressão de criatividade quando permite ao leitor a abertura de portas que, para ele, são essenciais para se afirmar como SER, sobretudo como SER superior, um SER que está na posse, não apenas de uma consciência, mas também de um lugar fundamental no seio da comunidade onde vive.
O sujeito poético integrasse no contexto temporal em que vive, pelo que seria impensável a elaboração de um poema como Os Lusíadas no século XXI. A expressão poética é filha do seu tempo, é uma consequência directa da contingência histórica.
Daí a grande força da poesia portuguesa: a sua qualidade criativa, onde muitos poetas diferem, mas ao mesmo tempo cria uma enorme unidade em torno dessa mesma poesia. Esta é também uma das funções sociais da poesia: a unidade na diversidade de um povo.
Contudo, várias são as funções sociais da poesia na formação dos povos, primeiro com a tradição oral, onde se transmite de geração em geração, através da narração, os feitos heróicos dos antepassados, enfabulados ou ficcionados, mas que ajudavam à memória dos povos. Depois, com o aparecimento da escrita foi possível postar parte desses testemunhos para a posteridade.
Na tradição oral a forma versejada servia para uma memorização mais fácil das epopeias, pelo menos no seu essencial. A escrita poética acabou por revolucionar a vida das civilizações, servindo no aspecto cultural, mas também no aspecto social e económico – muitos tratados de astronomia e agronomia, por exemplo, foram escritos em formas versejadas, assim como na medicina e na religião, ao serem criadas em forma rimada lengalengas, rezas, mezinhas. Com o aparecimento da prosa os tratados passaram a utilizar esta como forma literária, ou seja, o poema, cujo objectivo é a transmissão de informação foi substituído pela prosa, mantendo, contudo, a poesia para as epopeias, cantigas e para o drama teatralizado, entre outras utilizações.
É a partir destes desenvolvimentos que a poesia cumpre parte da sua função social como fonte de prazer e de conhecimento. Se não proporcionasse prazer, se não transmitisse sentimentos, então não cumpria os seus desígnios, acabando por não se sentir o seu efeito social. A poesia que dá prazer acaba por influenciar mesmo aqueles que não a lêem.
No entender de Eliot «a poesia difere de todas as artes, em possuir um valor, para os que pertencem à mesma raça e falam a mesma língua que o poeta», por isso a poesia adquire um carácter de identidade nacional, onde os naturais desse idioma sentem e tomam os poetas como seus (casos de Camões e Pessoa, para só falar dos nossos poetas maiores), entendendo-os melhor que aqueles que não se expressam na mesma língua. A poesia traduzida não tem, muitas vezes, o mesmo sentimento que lida pela língua de origem. É neste contexto que a poesia se transforma em parte de um processo civilizacional, quando deixa de ter uma influência directa sobre um povo essa cultura começa a ser absorvida por outra superior. Neste pressuposto o poeta tem o dever de promover a sua língua em primeiro lugar para a conservar e seguidamente para a alargar e melhorar, devendo chegar às pessoas, de forma a alterar os sentimentos, tornando o seu povo mais consciente, dando-lhe a conhecer a sua história, mas, ao mesmo tempo, dentro de um processo evolutivo da língua e da civilização em que está inserido, acabando o poeta por ter de se aperceber da evolução do mundo. Se isto não acontecer vaticina-se o pior para as línguas e para as civilizações, se não continuarem a surgir grandes autores e principalmente grandes poetas, a língua decairá, podendo a literatura dos nossos antepassados chegar ao ponto de ser completamente estranha e desaparecer.
Partindo deste princípio as boas obras são intemporais, mas para que tenham esse carácter de intemporalidade têm de haver novos autores que persigam a tradição dos seus antepassados, sobretudo os poetas. Devem estar à frente do seu tempo, permitindo trazer novidade à literatura, assim como às outras artes. É este aspecto que leva a que os grandes poetas não sejam, muitas vezes, reconhecidos pelos seus contemporâneos, mas, nas gerações seguintes. Os grandes poetas têm o dever de influenciar os novos escritores.
Na realidade a função social da poesia é «o facto de ela afectar, proporcionalmente à sua excelência e vigor, o falar e a sensibilidade de toda a nação» (T. S. Eliot). No entanto, considera-se que a poesia, apesar da identidade nacional que experimenta, não se deve perder de todo o encadeamento continental e mundial, se um país perde a sua poesia e os seus poetas pode ser todo um continente ou toda a humanidade que perde a sua identidade. «O começo de um declínio, que significaria que em toda a parte os homens iriam deixar saber de expressar-se e, consequentemente, deixariam de ser capazes de sentir as emoções de seres civilizados.» (T. S. Eliot)
A poesia é uma forma de estética e de beleza no seu olhar sobre mundo e da sua evolução civilizacional. Fazendo parte de todo um processo evolutivo, muito os povos lhe devem como arte, já que ela é considerada por muitos como a sua forma suprema, sobretudo nas áreas literárias. A poesia cumpre, enquanto forma perfeita de trabalhar as palavras, funções sociais muito importantes, como são o conhecimento da história, mesmo que ficcionada, como forma de comunicação, permitindo a evolução linguística de uma comunidade, mas, essencialmente, o que a poesia dá aos povos, sobretudo aos naturais da língua, é uma grande fonte de prazer. Mesmo que muitos não a leiam ela faz parte do saber, da formação cultural e da sua identidade enquanto povo e enquanto nação. A língua portuguesa leva mais longe esses desígnios e consegue expandir essa função social aos países com quem contactou e influenciou culturalmente durante séculos, pois os povos dos países falantes da língua portuguesa entendem de uma forma especial a poesia produzida por essa comunidade linguística, servindo como ponto essencial de ligação cultural e social desses povos, tão diferentes, mas tão iguais, pelas raízes que adquiriram em comum, também através da poesia.
Sendo a poesia a expressão da palavra essencial, como nos diz Adolfo Casais Monteiro, cabe ao poeta, segundo Eliot, a obrigação de explorar, de procurar os signos, ou palavras, para o inarticulado, de buscar sentimentos que todos nós mal podemos sentir, porque não têm palavras para eles; e, ao mesmo tempo, recorda que o explorador para além fronteiras da consciência comum só poderá regressar e contar o que viu aos seus semelhantes, se tiver sempre uma completa percepção das realidades que eles já conhecem.
Se a poética foi personalizada, mostrar as emoções e os sentimentos, com tempo vai dissipar-se, não marcando mais que um período vago, acabando por não trazer nada de novo ao panorama literário. Ao mesmo tempo muitos críticos, e essa tendência nota-se mais no jornalismo, têm a aptidão de analisar a vida do autor, colocando-a em concordância com a sua obra, chegando ainda a relegar essa mesma obra para segundo plano. O mundo das emoções pessoais, da vivência social, não é, ou não deve ser perceptível na escrita – o que não quer dizer que não possa ser aplicada. A vida do poeta pode ser banal, como o de qualquer outra pessoa, contudo o seu espírito criativo é algo que se transcende quando se cria a obra. Foge ao fútil, ao quotidiano e é partindo deste pressuposto que o poeta é notável e interessante. A forma como se encara a poesia deve deixar transparecer o que não é natural para os homens, o que não é óbvio e singular, deve ser-se consciente e inconsciente, não tornando a obra pessoal, apesar do poeta se rever nela. O que está no verso pode ser tudo, posso ser eu, podemos ser todos, mas, ao mesmo tempo, não ser ninguém.
O que se deve distinguir é a obra, não o autor e a sua vida, ou seja, o artista mais perfeito e que pode produzir uma obra de arte é aquele que consegue separar a arte do homem. Tudo o que o poeta precisa para escrever a sua obra vai-se formando no seu espírito, até criar uma unidade que possa ser formada e transmitida na sua nova obra.
Além do mais os poetas contemporâneos têm hoje à sua disposição um privilégio, o de poderem escolher entre três subgéneros do género a que se dedicam, a poesia lírica. São eles o poema em verso (medido, livre, rimado ou sem rima), o poema em prosa e o poema visual.
Esta situação, que veio sendo preparada ao longo do século XX, mas que teve início em meados do século XIX, resulta da acção de movimentos de vanguarda que produziram a erosão de conceitos clássicos da concepção e da construção dos poemas líricos no mundo ocidental. Não se trata de uma sistematização formal, mas sim, o reconhecimento de diferentes estéticas escriturais da poesia que hoje coabitam universalmente no espaço da emoção e da invenção.
A grande riqueza da poesia é transformar o esperado no inesperado, juntar conceitos, mas, ao mesmo tempo provocar a sua desconexão, numa mistura de sensibilidades e imaginação pessoal ao serviço da inteligência estética, ou seja, a poesia é a palavra aliada à estética, tornando-a numa forma absoluta de arte.
Alfredo Vieira

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

A imprensa portuguesa e as eleições americanas

Começamos por abrir os jornais, os sítios da comunicação social na internet, deparamo-nos com inúmeros textos de opinião sobre as eleições americanas, os candidatos a presidente e a vice-presidente. Escreve-se sobre tudo, sobre as opções e o posicionamento político nacional e internacional dos vários intervenientes – o que é de louvar, pois estamos perante uma das maiores potências do mundo, onde se joga muito do que se pode passar no mundo –, mas depois comenta-se todos os fait-divers, como a saia de uma senhora, os óculos de outra, o tempo que um foi aplaudido em relação ao outro, a vida pessoal dos candidatos é esquadrinhada a régua e esquadro.
Será que não há nada de mais importante para se comentar? Não se deveria deixar esses temas para os jornais americanos especializados, os chamados tablóides? É que existem tantos problemas no país para comentar que me faz confusão os órgãos de comunicação social, que tenho por sérios, pagarem avenças, muitas delas chorudas, para publicar assuntos que não o são.
Se passarmos os olhos pelos jornais de referência internacionais não encontramos tantos artigos, quer de opinião, quer de actualidade, sobre as eleições americanas como os portugueses. É óbvio que dedicam atenção, pois trata-se de umas eleições importantes, mas dão especial destaque aos assuntos nacionais, os comentadores opinam sobre os temas do país. Em Portugal, com tantos problemas, como o desemprego, os baixos níveis salariais, as reformas de miséria, a insegurança, a justiça, a corrupção generalizada, as elevadas taxas de impostos, das mais altas da Europa, o custo dos derivados do petróleo, a deslocalização de empresas e encerramento de outras, reformas sociais importantes por fazer, os nossos fazedores de opinião só se lembram de escrever sobre os candidatos, as esposas dos candidatos, as filhas dos vice-candidatos, dos seus óculos e da sua roupa.
Deveriam as direcções dos órgãos informativos ponderar, sem retirar a liberdade de informação e de escrita, olhar para este pobre país tão mal governado e tão mal informado, pois continuamos a abrir telejornais, a fazer manchetes de assuntos internacionais que nos outros países a informação não dedica mais de poucos segundos.
Alfredo Vieira

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Homens e mulheres de “cultura”

Entre os homens e mulheres de cultura é habitual, quando não estão de acordo, esgrimirem argumentos, trocarem opiniões…, no fundo, terem discussões mais ou menos acaloradas, mas sem nunca chegarem ao insulto, pelo menos directo. Existe dentro da ética cultural muitos argumentos (por isso essas pessoas são munidos de vasto conhecimento e profundo saber, dotados de uma moral superior que lhes permite escrever e debater sem agredirem, de qualquer forma, os seus oponentes, ou contendores). O caso exemplar é a célebre questão coimbrã (polémica discussão sobre o Bom-Senso e o Bom-Gosto, que opôs os defensores do Realismo e do Naturalismo), com a carta de Antero de Quental a Feliciano Castilho. Isso, de facto, deveria ser a postura ética das pessoas de cultura. Mas o mundo está a mudar e já não é assim.
Alguns homens e mulheres de cultura para puderem viver condignamente dedicam-se a outras ocupações, pois só o trabalho em prol da cultura, em prol dos outros não permite ninguém sobreviver quanto mais viver condignamente. Então, alguns, quando atingem determinados status social que lhes dá alguma visibilidade perante a sociedade são cooptados pelos partidos e aliciados para a vida política, passando a girar em torno de um grupo onde se divide o bolo nacional, ou seja, entrando no sistema. Nesse novo estatuto esquecem que são homens e mulheres de cultura, deixam de esgrimir argumentos, trocarem opiniões e passam aos insultos mais vis e mais torpes para atingirem os seus fins: que a sua força política seja a mais votada, chegue ao poder e aí tenham as propendas e as benesses a que têm direito, a paga por esquecerem que são gente de cultura e passarem a ser políticos, no acesso semântico que ao longo das últimas décadas a palavra político começou a ser conotada na gíria popular.
Essas pessoas continuam a escrever, pintar, actuar, mantendo todo o mérito enquanto artistas, pintores, escultores, escritores, mas a perder em qualidades humanas, ferem a sua honestidade e o seu bom nome, extinguindo-se os atributos que granjearam junto da opinião pública.
Quem perde? Quem perde é a cultura portuguesa, tão deficitária de grandes referências, apesar de, felizmente, ainda termos alguns nomes, que preferem viver modestamente, mantendo o seu nome e carácter impoluto e sem mácula, contribuindo com as suas opiniões livres de homens e mulheres livres, pois não devem nada a ninguém.
Alfredo Vieira