sexta-feira, 22 de agosto de 2008

A tirania da arte musical

Alfredo Vieira

A Malaposta abriu a sua temporada de 2006 com um recital de piano, onde estiveram presentes dois grandes mestres da música portuguesa, Olga Prats e António Vitorino d’Almeida, num diálogo musical único, um espectáculo que dificilmente se pode esquecer. Se a qualidade de executante de Olga Prats sobressaiu, a capacidade de improviso do Maestro Vitorino d’Almeida foi notável.
É bem possível que as nossas palavras nada tragam de novo ao fascínio que a música adquire com estes dois nomes maiores da cultura portuguesa. Quem pôde assistir ao recital teve oportunidade de receber uma aula de música, com o conhecimento de muitos dos seus nomes maiores internacionais, ao mesmo tempo que se recordou grandes compositores portugueses, como Lopes Graça, musicólogo falecido em 1995 comemorando-se este ano o centenário do seu nascimento.
Olga Prats deliciou o público com as suas marzucas, valsas, tangos e pequenos trechos musicais, ao mesmo tempo que explicava a todos os presentes o que as notas reflectiam, o sentido e o sentir dos compassos, comentando e falando sobre os nomes tocados e sobre a sua música. Enquanto António Vitorino d’Almeida explicava com o improviso e desdobrava o seu sentir, em notas que faziam vibrar o público que enchia por completo o auditório da Malaposta.
É desta improvisação do Maestro que gostaríamos de falar um pouco.
Enquanto os homens das letras procuram nas palavras a sua textura, as suas camadas, para compreender o seu significado e descodificar de forma a explicar aos amantes da literatura o que se subentende do texto que o autor expôs, aquilo a que se chama ler nas entrelinhas. Daí nasce o ensaio literário, o estudo da literatura e da sua história. Vitrorino d’Almeida faz o mesmo com a música, desdobra com notas musicais aquilo que o recital o faz sentir, ou seja, consegue transmitir através da música as variantes que se podem concluir de uma peça, seja ela qual for. O Maestro transforma as notas de outros compositores na sua própria música, cria-se, dessa forma, um ensaio musical, audível, que prende o auditório ao seu enorme talento, não só de músico, mas de comunicador e de grande conhecedor do fenómeno musical, fazendo-nos entender, de forma fácil, um mundo do qual, muitas vezes, vivemos afastados.
É, de facto, com espectáculos como o recital de piano que nos faz gostar ainda mais da música de câmara, assim como ela é entendida. Foi uma lição extraordinária a que se assistiu e, agora, compreendemos melhor o porque de dificilmente encontrarmos músicos com a capacidade de Olga Prats e António Vitorino d’Almeida, que para além de executantes, são grandes mestres do conhecimento musical e grandes comunicadores.
De facto, este espectáculo fez-nos sentir saudades de programas televisivos como os que eram protagonizados pelo Maestro, assim como de outros, e recordo comunicadores como Vitorino Nemésio, David Mourão Ferreira, João Villaret, Mário Viegas, ou António Lopes Ribeiro, programas que aproximavam o grande público da cultura, da bela tirania da cultura, que nos absorvia e mantinha níveis de audiências acima da média.
Este recital de piano foi o início de uma temporada idealizada pela OdivelCultur para este ano, que promete muita qualidade pelo programa apresentado, no entanto, como lembraram Vitorino d’Almeida e Olga Prats, nota-se uma falha, o esquecimento das comemorações dos cem anos do nascimento de Fernando Lopes Graça, um dos grandes expoentes da música portuguesa do século XX.

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