domingo, 14 de setembro de 2008

Poesia fórmula absoluta de arte

Foi pedido pelo meu caro amigo Oscar Martina o encargo de dissertar sobre a relevância da poesia nos dia de hoje, qual o tipo de intervenção que o poeta deve ter junto dos leitores, a forma de interpretar a poesia e qual o conceito de criatividade. Desde já agradeço a sua lembrança e espero corresponder, na medida das minhas limitações, ao pedido feito, não o pude recusar, já que se trata de um amigo, que está inserido num grupo de poetas que me é muito caro, pois aceitaram-me no seu seio desde a primeira hora, dando-me a honra de prefaciar o primeiro livro da sua tertúlia. Não vou seguir preceito pedido, preferi encadear todos os temas tornando mais fácil a sua interpretação por toda a plateia. Espero não os maçar muito.
Roman Yakobson, numa magnífica lição proferida em 1968 na Universidade Clássica de Lisboa disse: «Como se sabe a palavra poesia é de origem grega, prende-se a um verbo que significa criar e, na verdade, a poesia sendo o único aspecto criador, é o domínio mais vasto da linguagem. Quanto à palavra verso, tem a mesma raiz que prosa, visto que a prosa deriva de provorsa, proversa; oratio proversa é aquele que caminha resolutamente em frente, com uma direcção estrita. Além disso, versus quer dizer retorno, um discurso que comporta regressos – e penso ser este um fenómeno fundamental de que podemos tirar grande número de ilações». O verso é o que é feito de quebras, retornos e regressos, desenhando assim um perfil de ocupação de páginas em branco. Se a prosa se presta para dizer continuidades, o verso serve para as descontinuidades.
Por isso há momentos na vida em que se descobre algo dentro de nós que se encontrava escondido ou reprimido, vozes que muitas vezes não se querem ouvir, mas algum dia despertam da sua letargia e se tornam mais fortes que o ser humano que as transporta. A poesia está dentro de nós a incubar, como bicho que nos vai corroendo e qual doença que se manifesta, emerge, e nesse dia nada há a fazer senão agarrar na pena e escrever o que nos vai na alma. É deixar avançar o espírito, já que ele conduz a mão, e soltar o brotar das palavras. Fala-se de amor, mas não se esquecem os dramas sociais, nem o passado glorioso deste povo, assim como da civilização cristã, da qual indubitavelmente fazemos parte. Como é natural, não é só a inspiração que nos leva à criatividade, a leitura da grande poesia e dos grandes poetas portugueses é essencial para a sua compreensão e a melhor forma de aplicar a nossa criatividade, não devemos sentir-nos tentados a copiar estilos literários, devemos sim apostar na inovação, na novidade.
A poesia só é absoluta expressão de criatividade quando permite ao leitor a abertura de portas que, para ele, são essenciais para se afirmar como SER, sobretudo como SER superior, um SER que está na posse, não apenas de uma consciência, mas também de um lugar fundamental no seio da comunidade onde vive.
O sujeito poético integrasse no contexto temporal em que vive, pelo que seria impensável a elaboração de um poema como Os Lusíadas no século XXI. A expressão poética é filha do seu tempo, é uma consequência directa da contingência histórica.
Daí a grande força da poesia portuguesa: a sua qualidade criativa, onde muitos poetas diferem, mas ao mesmo tempo cria uma enorme unidade em torno dessa mesma poesia. Esta é também uma das funções sociais da poesia: a unidade na diversidade de um povo.
Contudo, várias são as funções sociais da poesia na formação dos povos, primeiro com a tradição oral, onde se transmite de geração em geração, através da narração, os feitos heróicos dos antepassados, enfabulados ou ficcionados, mas que ajudavam à memória dos povos. Depois, com o aparecimento da escrita foi possível postar parte desses testemunhos para a posteridade.
Na tradição oral a forma versejada servia para uma memorização mais fácil das epopeias, pelo menos no seu essencial. A escrita poética acabou por revolucionar a vida das civilizações, servindo no aspecto cultural, mas também no aspecto social e económico – muitos tratados de astronomia e agronomia, por exemplo, foram escritos em formas versejadas, assim como na medicina e na religião, ao serem criadas em forma rimada lengalengas, rezas, mezinhas. Com o aparecimento da prosa os tratados passaram a utilizar esta como forma literária, ou seja, o poema, cujo objectivo é a transmissão de informação foi substituído pela prosa, mantendo, contudo, a poesia para as epopeias, cantigas e para o drama teatralizado, entre outras utilizações.
É a partir destes desenvolvimentos que a poesia cumpre parte da sua função social como fonte de prazer e de conhecimento. Se não proporcionasse prazer, se não transmitisse sentimentos, então não cumpria os seus desígnios, acabando por não se sentir o seu efeito social. A poesia que dá prazer acaba por influenciar mesmo aqueles que não a lêem.
No entender de Eliot «a poesia difere de todas as artes, em possuir um valor, para os que pertencem à mesma raça e falam a mesma língua que o poeta», por isso a poesia adquire um carácter de identidade nacional, onde os naturais desse idioma sentem e tomam os poetas como seus (casos de Camões e Pessoa, para só falar dos nossos poetas maiores), entendendo-os melhor que aqueles que não se expressam na mesma língua. A poesia traduzida não tem, muitas vezes, o mesmo sentimento que lida pela língua de origem. É neste contexto que a poesia se transforma em parte de um processo civilizacional, quando deixa de ter uma influência directa sobre um povo essa cultura começa a ser absorvida por outra superior. Neste pressuposto o poeta tem o dever de promover a sua língua em primeiro lugar para a conservar e seguidamente para a alargar e melhorar, devendo chegar às pessoas, de forma a alterar os sentimentos, tornando o seu povo mais consciente, dando-lhe a conhecer a sua história, mas, ao mesmo tempo, dentro de um processo evolutivo da língua e da civilização em que está inserido, acabando o poeta por ter de se aperceber da evolução do mundo. Se isto não acontecer vaticina-se o pior para as línguas e para as civilizações, se não continuarem a surgir grandes autores e principalmente grandes poetas, a língua decairá, podendo a literatura dos nossos antepassados chegar ao ponto de ser completamente estranha e desaparecer.
Partindo deste princípio as boas obras são intemporais, mas para que tenham esse carácter de intemporalidade têm de haver novos autores que persigam a tradição dos seus antepassados, sobretudo os poetas. Devem estar à frente do seu tempo, permitindo trazer novidade à literatura, assim como às outras artes. É este aspecto que leva a que os grandes poetas não sejam, muitas vezes, reconhecidos pelos seus contemporâneos, mas, nas gerações seguintes. Os grandes poetas têm o dever de influenciar os novos escritores.
Na realidade a função social da poesia é «o facto de ela afectar, proporcionalmente à sua excelência e vigor, o falar e a sensibilidade de toda a nação» (T. S. Eliot). No entanto, considera-se que a poesia, apesar da identidade nacional que experimenta, não se deve perder de todo o encadeamento continental e mundial, se um país perde a sua poesia e os seus poetas pode ser todo um continente ou toda a humanidade que perde a sua identidade. «O começo de um declínio, que significaria que em toda a parte os homens iriam deixar saber de expressar-se e, consequentemente, deixariam de ser capazes de sentir as emoções de seres civilizados.» (T. S. Eliot)
A poesia é uma forma de estética e de beleza no seu olhar sobre mundo e da sua evolução civilizacional. Fazendo parte de todo um processo evolutivo, muito os povos lhe devem como arte, já que ela é considerada por muitos como a sua forma suprema, sobretudo nas áreas literárias. A poesia cumpre, enquanto forma perfeita de trabalhar as palavras, funções sociais muito importantes, como são o conhecimento da história, mesmo que ficcionada, como forma de comunicação, permitindo a evolução linguística de uma comunidade, mas, essencialmente, o que a poesia dá aos povos, sobretudo aos naturais da língua, é uma grande fonte de prazer. Mesmo que muitos não a leiam ela faz parte do saber, da formação cultural e da sua identidade enquanto povo e enquanto nação. A língua portuguesa leva mais longe esses desígnios e consegue expandir essa função social aos países com quem contactou e influenciou culturalmente durante séculos, pois os povos dos países falantes da língua portuguesa entendem de uma forma especial a poesia produzida por essa comunidade linguística, servindo como ponto essencial de ligação cultural e social desses povos, tão diferentes, mas tão iguais, pelas raízes que adquiriram em comum, também através da poesia.
Sendo a poesia a expressão da palavra essencial, como nos diz Adolfo Casais Monteiro, cabe ao poeta, segundo Eliot, a obrigação de explorar, de procurar os signos, ou palavras, para o inarticulado, de buscar sentimentos que todos nós mal podemos sentir, porque não têm palavras para eles; e, ao mesmo tempo, recorda que o explorador para além fronteiras da consciência comum só poderá regressar e contar o que viu aos seus semelhantes, se tiver sempre uma completa percepção das realidades que eles já conhecem.
Se a poética foi personalizada, mostrar as emoções e os sentimentos, com tempo vai dissipar-se, não marcando mais que um período vago, acabando por não trazer nada de novo ao panorama literário. Ao mesmo tempo muitos críticos, e essa tendência nota-se mais no jornalismo, têm a aptidão de analisar a vida do autor, colocando-a em concordância com a sua obra, chegando ainda a relegar essa mesma obra para segundo plano. O mundo das emoções pessoais, da vivência social, não é, ou não deve ser perceptível na escrita – o que não quer dizer que não possa ser aplicada. A vida do poeta pode ser banal, como o de qualquer outra pessoa, contudo o seu espírito criativo é algo que se transcende quando se cria a obra. Foge ao fútil, ao quotidiano e é partindo deste pressuposto que o poeta é notável e interessante. A forma como se encara a poesia deve deixar transparecer o que não é natural para os homens, o que não é óbvio e singular, deve ser-se consciente e inconsciente, não tornando a obra pessoal, apesar do poeta se rever nela. O que está no verso pode ser tudo, posso ser eu, podemos ser todos, mas, ao mesmo tempo, não ser ninguém.
O que se deve distinguir é a obra, não o autor e a sua vida, ou seja, o artista mais perfeito e que pode produzir uma obra de arte é aquele que consegue separar a arte do homem. Tudo o que o poeta precisa para escrever a sua obra vai-se formando no seu espírito, até criar uma unidade que possa ser formada e transmitida na sua nova obra.
Além do mais os poetas contemporâneos têm hoje à sua disposição um privilégio, o de poderem escolher entre três subgéneros do género a que se dedicam, a poesia lírica. São eles o poema em verso (medido, livre, rimado ou sem rima), o poema em prosa e o poema visual.
Esta situação, que veio sendo preparada ao longo do século XX, mas que teve início em meados do século XIX, resulta da acção de movimentos de vanguarda que produziram a erosão de conceitos clássicos da concepção e da construção dos poemas líricos no mundo ocidental. Não se trata de uma sistematização formal, mas sim, o reconhecimento de diferentes estéticas escriturais da poesia que hoje coabitam universalmente no espaço da emoção e da invenção.
A grande riqueza da poesia é transformar o esperado no inesperado, juntar conceitos, mas, ao mesmo tempo provocar a sua desconexão, numa mistura de sensibilidades e imaginação pessoal ao serviço da inteligência estética, ou seja, a poesia é a palavra aliada à estética, tornando-a numa forma absoluta de arte.
Alfredo Vieira

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